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Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1904)

1-   ESQUECIMENTO DE NOMES PRÓPRIOS

Com base na ideia de que o esquecimento de um nome é causado por um deslocamento do processo que deveria atingir um nome específico para um substituto incorreto, Freud acredita que o sentido desse esquecimento pode ser descoberto através das conexões que o nome correto possui com os nomes errados substitutivos. Um dos exemplos mais famosos de esquecimentos desse tipo, também estudado por Lacan no seminário 5 (As formações do inconsciente), aconteceu em 1898, quando Freud não conseguiu lembrar o nome do pintor Signorelli.

A análise desse esquecimento inicia-se pela observação dos nomes errados que ocorrem a Freud: Botticelli e Boltraffio. Em seguida, Freud repara no contexto temporal e espacial de sua ocorrência: “eu viajava de carruagem com um estranho, indo de Ragusa, na Dalmácia, rumo a uma estação na Herzegovina; calhou de falarmos sobre viagens pela Itália, e perguntei ao meu companheiro de viagem se já estivera em Orvieto e se vira ali os famosos afrescos de ***”. Então Freud recorda que o tópico anterior da conversa com o estranho lhe suscitou pensamentos sobre a morte e a sexualidade, e que ele não apenas não os compartilhou com o estranho como também reprimiu o seu desenvolvimento no campo da consciência. Assim, o esquecimento “se revela como sendo uma perturbação do novo tema que surgiu causada pelo anterior”. Essa cadeia de pensamentos despertada por associação e posteriormente reprimida pela consciência “adquiriu a capacidade de atrapalhar um pensamento posterior”.

Na época desse esquecimento, Freud ainda estava sob o efeito de uma notícia que recebera poucas semanas antes, em Trafoi, sobre o suicídio de um ex-paciente que sofria de distúrbios sexuais. A notável a semelhança entre Trafoi e Boltraffio. Foi como se, ao tentar esquecer essa notícia, Freud tivesse errado o alvo, e os nomes substitutivos lembravam, à maneira de um compromisso, tanto o que ele esqueceu quanto o que quis lembrar...”.

Freud também investiga os tipos de ligações estabelecidas entre o nome buscado e o tema recalcado. Nomes seccionados, partes de sílabas, substituições, deslocamentos e traduções fazem parte desse processo. É importante mencionar que tudo acontece fora do campo da consciência.

Outros fatores como o sono, o cansaço e a desatenção contribuem para o esquecimento de nomes próprios, mas não atuam como motivo. Funcionam apenas como condições de possibilidade para que o elemento recalcado sugue o nome buscado para o campo do inconsciente. “Afinal, é provável que um elemento recalcado esteja sempre empenhado em se fazer valer em algum outro lugar, mas que alcance esse resultado apenas ali onde condições apropriadas vêm ao seu encontro.

Resumo das condições para o esquecimento: 1) predisposição para esquecer, 2) uma repressão tenha acontecido logo antes do esquecimento, 3) uma associação entre o nome buscado e o elemento recalcado. Além de uma associação externa, eles também precisam ter um nexo de conteúdo. Freud garante que os nomes substitutivos sempre ocorrem espontaneamente, e sempre tem relação com o elemento recalcado e o nome buscado. Por fim, “ao lado do esquecimento simples de nomes próprios também ocorre um esquecimento que é motivado por recalcamento”.

 

 

2-   ESQUECIMENTO DE PALAVRAS ESTRANGEIRAS

Da mesma forma pode-se explicar o esquecimento de palavras ou expressões em outras línguas, muito comum por falta de domínio de vocabulário. Por exemplo, Freud conversava com um estudante quando este esqueceu a palavra aliquis no verso “exoriar(e) aliquis nostris ex ossibus ultor”(Tradução: Que alguém se levante de nossos ossos como vingador). Para ajuda-lo na descoberta do sentido deste esquecimento, Freud pediu que ele lhe comunicasse “sinceramente e sem crítica tudo que lhe ocorre quando dirige a atenção, sem propósito determinado, para a palavra esquecida”. Então o seu interlocutor compartilhou ideias relativas a líquido, fluídos, sangue, mulheres, santos e calendários. Não tardou para que ele revelasse uma preocupação com o atraso da menstruação de uma mulher com quem tivera relações sexuais, bem como uma inclinação secreta para abortar o bebê caso a gravidez viesse a se confirmar.

Neste segundo exemplo não há relação de contiguidade temporal entre o esquecimento e o material recalcado, ou seja, não houve um recalque imediatamente anterior ao esquecimento que pudesse ecoar como perturbação. O esquecimento parece determinado pelo âmago do tema da conversa. Segundo Freud, o orador esqueceu essa palavra justamente quando lamentava que a geração atual de seu povo estivesse sendo prejudicada em seus direitos, e desejava vingança contra os opressores. Dessa forma, quando o desejo de vingança do estudante se vinculou à necessidade de descendentes intrometeu-se um pensamento contraditório: ‘Desejas realmente ter descendência com tamanha intensidade? Isso não é verdade. Em que embaraço te envolverias se agora recebesses a notícia de que esperas um descendente daquela pessoa que conheces? Não, nada de descendência – ainda que precisemos dela para vingança.” Assim como no caso do esquecimento do nome Signorelli, acontece uma associação entre uma representação e um desejo contrariado. Novamente, uma contradição advinda do recalcado causa a perturbação.

 

 

3-        ESQUECIMENTO DE NOMES E SEQUENCIAS DE PALAVRAS

Com base em vários exemplos apresentados neste capítulo, os esquecimentos e os atos-falhos analisados por Freud parecem seguir algumas etapas:

1.    Uma pessoa deseja dizer ou fazer algo;

2.    Ao agir, ocorre um esquecimento ou um lapso (formação do inconsciente).

3.    Pede-se que a pessoa relate tudo que lhe ocorre a respeito da formação do inconsciente.

4.   São estabelecidas relações entre a formação do inconsciente e o conteúdo relatado. Afinal, conforme Freud afirma na página 51, “...o que foi esquecido ou distorcido é relacionado por algum caminho associativo com um conteúdo de pensamento inconsciente, do qual parte o efeito que se torna visível como esquecimento.”

5.    Conclui-se pela causa afetiva que determinou o fato analisado. Ela sempre inclui assuntos íntimos e desagradáveis. Freud até menciona a expressão “complexo pessoal” para se referir ao centro de gravidade do ato-falho.

O material encontrado nos exemplos mencionados por Freud neste capítulo inclui um pedido de casamento recusado, doença, envelhecimento, morte, conflitos interpessoais, competência profissional, problemas familiares, vida amorosa, traumas da infância, sentimentos de culpa, receios, preocupações, aversões, impulsos agressivos e sexuais em geral.

Freud apresenta um resumo do mecanismo do esquecimento: ele “consiste na perturbação da pretendida reprodução do nome por uma cadeia de pensamento alheia e não consciente no momento. Entre o nome que foi perturbado e o complexo perturbador existe uma conexão de antemão ou tal conexão se estabeleceu, com frequência por caminhos que parecem artificiais, através de associações superficiais (externas).” Ele acrescenta que entre os complexos perturbadores os da autorreferência (que dizem respeito à própria pessoa ou a sua vida) mostram-se como os mais eficazes.

Além disso, ele esclarece que outros fatores podem atuar como condições facilitadoras para a formação do inconsciente (como a enxaqueca, intoxicação, cansaço, insônia, distúrbios circulatórios, etc.), mas nunca podem ser tomados como causa.

4 - SOBRE LEMBRANCAS DE INFÂNCIA E LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS

Freud resume algumas ideias apresentadas no seu artigo de 1899, “lembranças encobridoras”. Segundo ele, ao tentarmos lembrar da nossa infância o mecanismo do deslocamento faz com que coisas importantes pareçam embaçadas, e detalhes insignificantes surjam com grande nitidez. Analisar lembranças encobridoras é como remar contra a maré. É preciso vencer as resistências que recalcaram as impressões significativas e, por substituição, trouxeram à tona outras, indiferentes e secundárias. Por serem construídas dessa forma, elas podem ser do tipo:

· Retrocedente: O conteúdo encoberto é substituído por uma lembrança anterior (mais antiga).

· Antecipadora: O conteúdo encoberto é substituído por uma lembrança posterior (mais recente).

· Simultânea (ou contígua): O conteúdo encoberto e a lembrança pertencem ao mesmo momento.

A semelhança deste fenômeno com o esquecimento de nomes próprios é notável: em ambos os casos trata-se do malogro do recordar “...a memória não reproduz o que deveria corretamente reproduzir, mas alguma outra coisa como substituto”. Nota-se que o mecanismo de substituição por deslocamento também acontece da mesma forma. A principal diferença consiste na reação da consciência diante do conteúdo mnêmico. Em um caso (lembranças encobridoras) ficamos surpreso pela capacidade de lembrar detalhes tão remotos e pouco importante; em outro (esquecimento de nomes próprios), temos a sensação de que o nome correto nos escapa. Tudo indica que existe uma tendência inconsciente favorecendo uma lembrança e se opondo à outra.

Sobre a amnésia infantil, Freud garante que “é perfeitamente possível que o esquecimento infantil possa nos fornecer a chave para compreender aquelas amnésias que (...) estão na base da formação de todos os sintomas neuróticos.” A maioria das nossas lembranças de infância são falsificadas, incompletas ou deslocadas no tempo e no espaço por forças psíquicas posteriores. Um homem de 24 anos, por exemplo, disse ao Freud que conseguia lembrar uma cena dos seus 5 anos de idade: ele era aluno de sua tia e tinha dificuldades para aprender a diferença entre o m e o n. Para Freud, essa lembrança era a representação simbólica de uma outra dificuldade, relacionada com a diferença entre os sexos (menino e menina), recalcada.

O exemplo mais clássico de uma lembrança encobridora é relatado pelo próprio Freud: Aos três anos de idade, “via-me pedindo e chorando, parado diante do armário cuja porta meu meio-irmão, vinte anos mais velho, mantinha aberta, e então minha mãe, bela e esbelta, entrava subitamente no quarto como se estivesse voltando da rua”. Após análise e pesquisa, Freud compreendeu que se tratava de uma preocupação com o desaparecimento da sua mãe assim como a sua babá desaparecera dias antes. O armário é o representante simbólico do ventre-materno; e o irmão, do pai de Freud. Na época, sua mãe tinha recém dado à luz a uma menina.

 

5 - OS LAPSOS DE FALA

Os lapsos de fala são palavras ou expressões que nos surgem de forma involuntária e que não correspondem com aquilo que tínhamos a intenção de dizer. Ao tentarmos dizer algo (A), dizemos outra coisa (B) por causa da interferência de um terceiro dizer (C). Ao invés de um branco, como nos casos de esquecimentos, surge outra palavra ou expressão de forma involuntária e espontânea, quer tenhamos consciência ou não, à posteriori, dessa substituição. Em resumo, a fórmula do lapso poderia ser descrita como A+C=B, e o sentido de um lapso só pode ser encontrado investigando a interferência deste “terceiro dizer” (ítem C), que corresponde a um fluxo desenfreado de associações abaixo do limiar da consciência movido pela força contra-pressão do material recalcado. Assim, o lapso é uma formação do inconsciente tão original quanto os sonhos ou os sintomas neuróticos, e, portanto, deve ser analisado da mesma forma (via associação-livre).

Muitos fatores contribuem para a ocorrência de lapsos, como impaciência (produzidos pela antecipação de palavras na frase), pensamentos alheios ao contexto da conversa, a intervenção de lembranças infantis recalcadas, descargas afetivas inibidas, sentimentos conflitantes, palavras reprimidas, etc. Em todos os casos devem ser considerados o nível de vontade do sujeito falante em dizer algo (A), e o grau de atenção consciente usada para refrear o fluxo de associações (C). O verdadeiro sentido de um lapso surge apenas quando desvendamos a força que determina esse fluxo de associações, ou seja, aquilo que a consciência do sujeito se empenha em ocultar. As diversas materializações dessa força (manifestações do inconsciente) devem ser conjugadas como peças de um quebra-cabeças, de forma que ela possa ser contemplada como um todo pela consciência. Evidentemente, uma montagem completa, uma significação perfeita que represente totalmente o conteúdo recalcado, parece uma realização utópica correspondente com o encontro do “umbigo dos sonhos” e um idealizado final de análise. A análise de um lapso é apenas um passo de uma caminha muito longa, talvez infinita. Sobre até onde ir na análise de um lapso, Freud comenta que encontra em suas análises “a influência de pensamentos exteriores à intenção de fala como sendo determinante para o surgimento do lapso e suficiente para esclarecimento do erro de fala ocorrido.

As leis segundo as quais os fonemas são combinados ou substituídos para a produção de um lapso são complexas. Vão além das distorções, desfigurações e trocadilhos que geralmente algumas pessoas fazem voluntariamente. Para haver um lapso é preciso que a palavra-alvo (A) ative, por associação, outros círculos de pensamentos (C). Trata-se sempre de uma “perturbação causada por uma ideia meio reprimida externa ao contexto pretendido...”. Não raro a constatação do lapso produz vergonha. Esse afeto sugere a categoria do fluxo de associações (círculo de pensamentos) que agiram sobre a palavra-alvo. Esse fator perturbador costuma ser um impulso agressivo ou sexual reprimido coisas censuráveis pela consciência moral.

- o lapso pode prescindir completamente daquela facilitação que lhe garante a homofonia e impor-se apenas com o apoio de relações conteudísticas ocultas.

- força da autocrítica.

- autodenúncia

-afetam o ritmo e a execução da fala. Balbuciar e gaguejar. Embaraço. Conflito interno. Estar presente de corpo e alma. Seriedade e sinceridade.

- ênfases, omissões, expressões forçadas e retorcidas: o que não está bem resolvido? O que está latejando no inconsciente?

 

6 – LAPSOS DE LEITURA E ESCRITA

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