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A interpretação dos Sonhos (1900)

“este livro contém, mesmo segundo meu julgamento atual, a mais valiosa descoberta que tive a felicidade de fazer. Um insight como esse só nos ocorre uma vez na vida”

Freud, 1931.

1-      A LITERATURA CIENTÍFICA SOBRE OS PROBLEMAS DO SONHO

Freud é claro quanto ao seu objetivo: comprovar que sonhos são formações psíquicas de pleno sentido e podem ser interpretados corretamente. Neste livro ele irá explicar seus processos e a natureza das suas forças. Para algumas pessoas os sonhos são processos insignificantes e enganadores; para outras, são valiosos. Para uns, referem-se ao passado; para outros, são proféticos.

A.    A relação do sonho coma vida de vigília

A questão que Freud nos apresenta diz respeito à posição do sujeito que sonha. Ele está distante do mundo ou ainda mais próximo dele? Ou seja, quando sonhamos viramos às costas para o mundo de forma a entrar em um “outro mundo”, ou o sonho dá prosseguimento à vida de vigília? É importante, nesta parte inicial, reconhecermos que o material usado na construção dos sonhos precisa, necessariamente, ter sido um dia percebido (ou seja, é impossível representar algo que nunca passou pelos sentidos).

B.     O material onírico – A memória no sonho

O material usado na construção dos sonhos precisa, necessariamente, ter vindo da experiência. Se o sonho parece inédito é porque ele dispõe de um conhecimento superior: o acesso à memórias que não estão acessíveis durante a vigília. Grande parte dessas memórias pertence à vida infantil. Outro fato notável é que os elementos do dia anterior utilizados na construção do sonho surpreendem pela sua aparente pouca importância. É como se o sonho selecionasse materiais que ficaram em segundo plano, ou aquilo que não foi esgotado pela reflexão durante o dia.

C.    Estímulos e fontes do sonho

Existem quatro espécies de fontes do sonho:

1)      Excitação sensorial externa (objetiva);

Sabemos que fechar as portas sensoriais (luz, sons, cheiros, temperatura ou pressão) é importante para adormecer. Visando a continuidade do sono, o sonho pode fazer de um estímulo perturbador, como o som do despertador, material para o seu conteúdo manifesto. Esse fenômeno é explicado pela capacidade psíquica de substituir o estímulo por alguma outra representação que se encontra em relação associativa com ele. É como se ocorresse uma interpretação da excitação sensorial externa. A questão que surge diz respeito ao fator, além do estímulo, que determina o conteúdo do sonho. Quais são as regras que determinam o processo de associação e substituição? Por que o sonho vem a ter justamente uma determinada forma final específica? Qual a lógica do aparecimento de tantos detalhes que lhe confere, as vezes, os aspectos mais estranhos?

2)      Excitação sensorial interna (subjetiva);

Trata-se de pequenos estímulos sensoriais, como zumbidos no ouvido ou aquela “poeira luminosa” do campo visual. São estímulos usados com frequência na construção de “alucinações hipnagógicas” (conteúdo percebido logo antes de pegar no sono ou que permanece ativo por um breve tempo após o despertar).

3)      Estímulo corporal interno (orgânico);

“No sono a psique atinge uma consciência sensorial muito mais profunda e mais ampla de sua corporeidade do que na vigília...” (pg. 49). É comum que sinais adoecimento orgânico sejam utilizados para a construção do sonho. Assim desenvolveu-se a crença popular de que os sonhos possuem uma função diagnóstica. Contudo, os órgãos não precisam, necessariamente, adoecer para enviar estímulos à psique. Basta que funcionem. Da mesma forma que a nossa imagem (representação) do mundo é criada pelo intelecto, os sonhos correspondem com a transformação dos estímulos em figuras “que ocupam espaço e tempo e se movem seguindo o fio condutor da causalidade”. (pg. 53) É um processo equivalente ao da formação de delírios e alucinações. As sensações orgânicas podem ser, por exemplo, musculares, pneumáticas, gástricas, sexuais, periféricas e cinestésicas. Em resumo: Sensação > representação > consciência volta-se integralmente para a representação em detrimento da sensação.

Como saber exatamente qual estímulo corporal interno serviu de material para o sonho? Apenas a partir do sonho mesmo. Existem formas típicas de representação, como estar caindo, estar sem dentes, voando ou nu em público, por exemplo. Parece haver uma lei que determina que um órgão associado à um afeto, quando excitado (enviando estímulos), resulta em um sonho com o afeto correspondente. O sonho também pode representar a função do órgão excitado, como é o caso de urinar. Além disso, até mesmo a simples posição do corpo também parece produzir efeitos oníricos.

4)      Fontes de estímulo puramente psíquicas.

É fato que o sonho apresenta um conteúdo relativo aos interesses do sonhador e aos estímulos (internos e externos) que ele está recebendo do momento. Mas como acontece a derivação do material? É preciso reconhecer a influência de fatores exclusivamente psíquicos na determinação do conteúdo dos sonhos.

D.    Por que esquecemos o sonho após o despertar?

A memória tende a esquecer:

·         Experiências que não foram repetidas.

·         Experiências perceptivas de baixa intensidade.

·         Conteúdos isolados, ou seja, sem associações com elementos constantes ou já conhecidos que possam servir de referência para a memória acessá-lo.

·         Conteúdos compostos de forma confusa, fragmentos desconectados e incongruentes ao senso crítico (a recordação do sonho pode não corresponder com o seu verdadeiro conteúdo.  A justaposição de elementos pode, por exemplo, ser transformada em sucessão).

·         Conteúdo ofuscado por outros mais fortes, como é o caso dos estímulos externos ao acordar.

·         Conteúdos capazes de gerar desprazer. Neste sentido o trabalho da lembrança pode fazer seleção e adulteração de conteúdo (de forma involuntária e inconsciente).

·         O aspecto confuso e incongruente aparência congruente, coesa, lógica.

E.     As particularidades psicológicas do sonho

Quase não nos reconhecemos como autores dos nossos próprios sonhos. Eles são produzidos de forma involuntária, são estranhos, incoerentes, contraditórios, fracos de teor ético e moral, confusos, anacrônicos, anárquicos, absurdos e aparentemente sem lógica. As faculdades psíquicas (exceto pela memória) parecem reduzidas, especialmente na capacidade de julgamento, raciocínio, crítica e lógica. O sonho é como que dirigido por flutuações anímicas, afetivas. Enquanto a vigília trabalha com conceitos que podem ser manejados voluntariamente, o sonho é, basicamente, imagético. Ele cria situações e dramatiza ideias nas quais cremos como se fosse uma percepção externa, real e verdadeira.

A condição para o sono não é tanto a ausência de estímulos sensoriais, mas principalmente a falta de interesse neles. Se chamamos alguém pelo nome, por exemplo, é mais provável que ele acorde do que se disséssemos o nome de outra pessoa ou uma palavra aleatória (exceto, talvez, palavras como “fogo”, ou “socorro”, etc.)

Para compreender a complexidade dos sonhos é preciso atravessar o seu caos aparente, sua loucura, e buscar pela sua lógica, seu método, que indica um modo específico de associação de ideias / pensamentos. O processo parece linear: estímulos > representações (ilusões) > ligação associativa com outro material > formação de novas representações (ilusões). Por fim, um resíduo do poder ordenador da consciência efetua uma elaboração final. Se lembramos do sonho repleto de lacunas e saltos, isso é apenas aparente. Nenhuma imagem pode surgir sem ancorar-se em algum conteúdo prévio. Pela capacidade do sonho comprimir muitos estímulos em pouco tempo, recordar-se dele na íntegra é extremamente difícil, se não impossível (umbigo do sonhos – parte indecifrável).

F.     Os sentimentos éticos no sonho

Em que medida as disposições e os sentimentos morais da vigília se estendem à vida onírica? Algumas pessoas acreditam que jamais perdemos a distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, a virtude e o vício; outras pessoas pensam que o sonho espelha o verdadeiro caráter moral do sonhador. Independente da linha de raciocínio, é precisa levar em consideração que qualquer avaliação da moralidade de alguém é parcial caso não reconheça o poder da consciência de barrar impulsos, mesmo que apenas por honra ou medo.

“Não se pode imaginar nenhum ato acontecido em sonhos cujo primeiro motivo não tenha passado de algum modo pela psique da pessoa desperta, seja como desejo, anseio ou moção.”

“Todo pecado cometido em sonhos implica pelo menos um obscuro mínimo de culpa.”

“Raramente um espírito é organizado de maneira tão feliz que sempre tenha força plena e não seja interrompido (...) por representações não só insignificantes, mas também grotescas, absurdas, zombadoras e desagradáveis.”

G.    Teorias do sonho e função do sonho

Existem várias teorias sobre os sonhos. Freud considera aquelas teleológicas, ou seja, que veem nele uma função. Para descobrir isso, ele ressalta a importância de fragmentos e restos de impressões do dia anterior. Estes elementos são utilizados como material para a construção do sonho, desde que eles não sejam muito insignificantes nem tenham recebido muita atenção durante a vigília (ou seja, não tenham sido esgotados pelo pensamento). Além disso, a mola propulsora da construção do sonho é a energia psíquica acumulada como produto da repressão (pulsões recalcadas, inibidas). Assim, o que foi reprimido consegue vir à luz, de forma disfarçada, no sonho. No sono, a consciência está enfraquecida na sua capacidade de discernir, sentir e querer; logo, não interfere na construção do sonho. Assim ela se torna um terreno livre no qual a fantasia pode manifestar seu potencial. Sem a influência de conceitos e causalidade lógica, a linguagem utilizada pela fantasia é visual, inclinada para o desmedido, o exagerado, de forma versátil, intensa, as vezes humorada e zombeteira como uma brincadeira infantil. É notável como o objeto ao qual ela se refere não é representado como é, mas com uma imagem estranha. Isso porque ela opera substituição, como são as formações simbólicas. Por fim, sua estrutura inclui o sujeito na relação com esse objeto. Esses fatores são fundamentais para que o sentido de um sonho possa ser descoberto.

H.    Relações entre o sonho e as doenças mentais

A semelhança dos sonhos com as doenças mentais é tão marcante que Freud afirmou, na página 113: “...trabalhamos na explicação das psicoses quando nos esforçamos por esclarecer o mistério do sonho”. Em ambas formações psíquicas existe a realização de um desejo. Elas diferem temporalmente: “o sonho surge como uma loucura breve, e a loucura como um sonho longo”. Do ponto de vista do médico, pode-se afirmar que vivemos em sonho tudo que observamos em um hospício: Retardamento da autoconsciência, imoralidade, percepções sensoriais alteradas (reduzidas no sonho, amplificadas na loucura), forma de associação de ideias, desproporções, exageros, barroquismo, mudanças na personalidade, expansão da memória e, principalmente, a tentativa de realização de desejos.

2-      O MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS: A ANÁLISE DE UMA AMOSTRA ONÍRICA

É possível interpretar um sonho, descobrir o seu sentido. Para a ciência, ele é produto de processos somáticos. Para os leigos, ele tem um sentido oculto que pode ser descoberto através da interpretação simbólica: substituir o seu conteúdo por outro análogo, compreensível, geralmente de caráter profético, como o sonho bíblico das sete vacas magras representar tempos de escassez para a população. Ou através da decifração, como se fosse uma escrita cifrada. Neste sentido, cada signo deve ser traduzido por outro que tenha significado específico de acordo com uma chave fixa (livro dos sonhos). Evidentemente, esse método fracassa pela evidente diferença subjetiva entre as pessoas. Este método parece acertado no aspecto analisar o sonho pelos seus elementos, pelas suas partes isoladas.

Freud percebeu que frequentemente seus pacientes lhe contavam sonhos. Ele decidiu concebê-los como mais uma forma de produção sintomática que contém alguma verdade importante para a cura. Para interpretá-los, portanto, ele seguiu o mesmo método clínico: pedir ao sujeito que preste atenção ao que lhe ocorre e que comunique tudo sem a interferência da atividade crítica. Espera-se dele a postura de um observador, e não de alguém que reflete. Trata-se de colocá-lo em um estado psíquico semelhante ao de adormecimento. As representações involuntárias se transformam em imagens visuais e acústicas. Nesse estado de espírito as representações involuntárias tornam-se voluntárias. Semelhante ao estado de criação poética. Se o entendimento examina com demasiada severidade as ideias emergentes, a criatividade fica bloqueada. Trata-se de permitir que as ideias se vinculem, sem medo, vergonha ou culpa. Assim o sonho deve ser analisado. Reconhecer, pela auto-observação, como cada elemento do sonho se conecta com outros pensamentos.

Como exemplo, Freud compartilha o famoso sonho da injeção de Irma. Com relação ao desejo, esse exemplo mostra, principalmente, A) como desejos sutis e profundos (como o desejo de criticar e zombar dos amigos, o desejo de vingança e o desejo de sentir-se livre da culpa por falhar em algum tratamento) se manifestam de forma disfarçada, B) como o sonho faz uso dos restos diurnos para construir suas cenas, C) sua capacidade de substituir uma pessoa por outra(s), e D) o mecanismo das operações simbólicas e associativas. Recomendo que todo leitor interessado estude este exemplo na íntegra (pg. 128, edição Série Ouro LP&M)

Freud enuncia claramente seu posicionamento em relação aos sonhos: “Compreendi o ‘sentido’ do sonho (...) ele realiza alguns desejos que foram despertados em mim pelos acontecimentos do dia anterior (...) seu conteúdo, portanto, é uma realização de desejo, e seu motivo, um desejo”.

3-      O SONHO É UMA REALIZAÇÃO DE DESEJO

Neste terceiro capítulo Freud apresenta vários exemplos de sonhos que figuravam uma realização de um desejo. Compreender este princípio implica aceitar que “o sonho não é comparável aos sons desarmônicos de um instrumento musical atingido pelo golpe de uma força externa em vez de ser tocado pela mão do instrumentista (...) ele foi construído por uma atividade intelectual altamente complexa...” Para que o sonho possa ser reconhecido como uma realização de desejo é preciso saber como ele elabora seu material. O sonho parece arranjar as coisas de uma maneira cômoda e egoísta. Por exemplo, quando estamos com sede podemos sonhar que estamos tomando água. Se queremos continuar dormindo, podemos sonhar que já estamos cumprindo com nossas obrigações do dia. “Infelizmente, a necessidade de água para saciar a sede não pode ser satisfeita com um sonho como no caso da minha sede de vingança contra meu amigo Otto e o Dr. M, (Freud refere-se à sede de vingança satisfeita no sonho relatado no capítulo anterior), porém a boa vontade é a mesma.

4-      A DISTORÇÃO ONÍRICA

Como pode todo sonho figurar a realização de um desejo quando a experiência nos mostra que vários sonhos (talvez a maioria) são desprazerosos? Freud responde que a sua teoria se refere ao conteúdo dos pensamentos latentes, e não ao seu conteúdo onírico manifesto.

Por que o sonho não expressa claramente o que quer? Por que ele precisa sofrer distorções para se manifestar na consciência? Para tratar deste tópico, Freud compartilha um sonho pessoal que ele resistia em interpretar. Essa resistência induz o sonhador a considerar o sonho como algo absurdo ou banal. Na verdade, “não quero interpretá-lo porque a interpretação contém algo a que resisto. Depois de completada a intepretação, fico sabendo a que eu resistia; era a afirmação de que R. (colega de profissão) é um imbecil.” Freud classifica esse sonho como um sonho hipócrita, no qual as defesas invertem o sentimento latente, inaceitável para a consciência, em seu oposto, aceitável. Neste caso, um insulto tornou-se afeição manifesta. Em casos assim, nos quais a realização do desejo é irreconhecível, operou uma defesa contra o desejo. Ela determinou a sua distorção, como os políticos distorcem verdades desagradáveis que precisam ser comunicadas para a população, ou o escritor que teme a censura. Assim ocorrem formas indiretas de expressão, alusivas, disfarçadas. Para esquematizar, podemos imaginar que o sujeito está dividido entre duas instâncias, uma é composta de energia desejante, pura força pulsional; e a outra considera desagradável o conteúdo da primeira, e tenta permitir que ele se expresse, se realize de forma aceitável.

Seu trabalho no consultório lhe permitiu agrupar vários exemplos de como todos os sonhos, sem exceção, correspondem com a realização de um desejo. O principal exemplo é o sonho da mulher do açougueiro.  Recomendo que todo estudante de psicanálise leia este sonho e sua interpretação. Em resumo, fica evidente como até mesmo o desejo de ter um desejo insatisfeito é satisfeito através de um sonho no qual o desejo figura-se como insatisfeito. No sonho, por exemplo, a mulher não consegue dar um jantar porque significaria tornar sua amiga ainda mais atraente para o seu marido, o açougueiro. Ela se identifica com essa amiga. O fenômeno da identificação histérica também merece ser melhor compreendido através da leitura deste caso, na integra.

Em nota adicionada em 1909 Freud comenta que estes sonhos frustrantes, indesejados ou simplesmente opostos ao desejo do sujeito podem ser de dois tipos: 1) Movidos pelo desejo de mostrar para o Freud que ele está errado (geralmente produzidos por pacientes em tratamento), e 2) Movidos por um componente masoquista (inversão de um componente agressivo, sádico). Por fim, ele elabora com mais sutileza sua tese: “o sonho é a realização disfarçada de um desejo reprimido, recalcado”. Quanto aos sonhos de angústia, eles são apenas mais uma forma de manifestação da angústia neurótica em geral (a qual, sabe-se, provém da vida sexual e corresponde com a libido desviada de seu destino, e se transformou em angustia).

5 - O MATERIAL E AS FONTES DO SONHO

Os sonhos são construídos a partir de restos diurnos, destacam impressões secundárias que não foram processadas durante a vigília, e também acessam memórias precoces infantis.

A – O recente e o indiferente no sonho

Elementos do dia anterior (restos diurnos) sempre estão presentes no sonho. Identificá-los é fundamental para encontrar outras lembranças e linhas de pensamentos que possam indicar o seu sentido. A fim de exemplificar a composição do sonho a partir de restos diurnos Freud relata o seu sonho da monografia botânica: “Escrevi uma monografia sobre certa planta. O livro está diante de mim e folheio uma lâmina colorida dobrada. Cada exemplar é acompanhado por um espécime dessecado da planta, semelhante aos espécimes de um herbário”. Para mencionar alguns deles, no dia anterior Freud viu um livro (provavelmente uma monografia) sobre o gênero Cyclamen, ele encontrou o prof. Gartner (jardineiro, em alemão) e sua jovem e florescente esposa, e, por fim, o sonho também toca em vários tópicos da conversa que Freud teve com um amigo, dr. Koningstein. Tendo em vista o objetivo deste resumo, optei por não relatar as várias lembranças de infância remetidas pelo sonho.

Para explicar o surgimento de restos diurnos nos sonhos Freud introduz o conceito de DESLOCAMENTO. Trata-se do processo pelo qual um elemento do dia anterior adquire, através de termos intermediários, a intensidade de outro elemento, que ficou eclipsado à consciência. Dessa forma, fragmentos de uma experiência podem ser utilizados como alusão à outra. “...a experiência indiferente torna-se substituta da experiência psiquicamente valiosa.” É o mesmo processo pelo qual, por exemplo, uma jovem privada de sexo pode transferir sua ternura para os animais ou plantas. É importante lembrar que o deslocamento é um tipo de distorção do conteúdo que tenta driblar a censura que controla o fluxo entre duas instâncias psíquicas (consciente X inconsciente). Quando duas ou mais impressões do dia são capazes de representar algum conteúdo importante elas podem formar uma unidade. Este processo é conhecido de CONDENSAÇÃO. Assim o sonho é capaz de combinar vários estímulos, de várias fontes, em um elemento onírico.

Para que ocorra a substituição de um elemento valioso (uma ideia ou sequencia de pensamentos) por um psiquicamente indiferente é preciso que eles tenham alguma ligação com experiências recentes. De um lado está o frescor da percepção recente, de outro lado está a importância da lembrança ou sequencia de ideias carregadas de afeto. O deslocamento substitui o material psiquicamente importante por material indiferente até mesmo quando estamos acordados. Nada que aparece em sonhos é irrelevante. Freud encerra o capítulo com vários exemplos. “Em todos esses sonhos ‘inocentes’, o elemento sexual se apresenta de maneira bastante chamativa como motivo da censura”.

B – O infantil como fonte do sonho

Freud cita vários exemplos para confirmar a hipótese de que nos sonhos surgem impressões da primeira infância que não estão acessíveis à consciência em estado de vigília. Dentre os exemplos, Freud relata o caso de um homem que viveu parte de sua infância em uma cidade que ele já havia esquecido, porém sonhou com ela, e pode confirmar a fidelidade do sonho com a realidade após visitar o lugar, muitos anos depois. Em outro caso, um homem sonhava frequentemente com um determinado objeto desconhecido. Em conversa com sua mãe, esta lhe confirmou tratar-se de um brinquedo que ele tinha quando criança. “... somos ensinados pela análise que o próprio desejo que estimulou o sonho, e cuja realização este mostra, provém da vida infantil, de maneira que para a nossa surpresa descobrimos que a criança, com seus impulsos, continua vivendo nos sonhos”. As experiências de infância manifesta, no presente, sua força em todos os sentimentos e sonhos. Freud conta a sua experiência de ver o pai ser desprezado por ser judeu, e como isso marcou sua identificação com o herói Aníbal, e produziu efeitos em seus sonhos. A cena infantil pode ser descoberta analisando possíveis alusões implícitas no conteúdo onírico manifesto. Muitas vezes a sexualidade determinou que uma experiencia infantil se torna-se afetivamente intensa. O sonho é produto de conexões, substituições, ligações e derivações em geral. As vezes é preciso recorrer à associação livre de palavras para encontrar o caminho até o conteúdo latente, original, determinante. Se nos aprofundarmos na análise de qualquer sonho que parece ter o seu sentido evidente, vamos encontrar uma experiencia e um desejo infantil.

C – As fontes somáticas do sonho

São três:

1º) estímulos sensoriais objetivos que procedem de objetos externos (como o barulho do despertador, por exemplo); 2º) estados internos de órgãos sensoriais (relacionado com alucinações hipnagógicas); e 3º) estímulos corporais internos (como aqueles advindos dos órgãos digestivos, sexuais e sistema urinário, por exemplo). Mesmo reconhecendo a sua fonte, como pode um simples estímulo resultar em sonhos tão complexos e repletos de conteúdo?

Freud procura a resposta na literatura sobre o tema, e decide-se pela importância do processo associativo. Do estímulo surge uma sensação que evoca imagens (recentes, como restos diurnos; ou primitivas, mas relevantes) e conferem ao estímulo um alto valor psíquico. É como se a psiquê, dormindo, interpretasse o estímulo nervoso através de sonhos. Nada é acaso ou aleatório no processo que vai dos estímulos às representações. A interpretação onírica do estímulo não é equivocada, mas seletiva quanto ao material que lhe interessa. Como estímulos corporais estão sempre presentes, muitos são deixados de fora, ignorados.

“O trabalho do sono, numa livre atividade da imaginação desembaraçada de suas cadeias diurnas, se esforça por figurar simbolicamente a natureza do órgão do qual provém o estímulo, bem como o tipo de estímulo”. Como o sentido do sonho está relacionado com os pensamentos latentes do sonhador, fracassa quem procura um “manual dos sonhos”. Mais importante do que saber a fonte do material psíquico é saber a sua causa, a sua determinação; logo, sua finalidade, seu objetivo.

 O material onírico é uma coleção de restos psíquicos (restos diurnos), de traços mnêmicos (lembranças infantis) e sensações durante o sono que se fazem atuais como representação. Assim, “os estímulos que ocorrem durante o sono são transformados numa realização de desejo, cujos outros elementos são restos psíquicos diurnos que conhecemos”.

Um estímulo externo pode ser reprimido, se for de baixa intensidade ou se o sono for muito profundo; ele pode ser anulado pelo sonho (guardião do sono); ou, em último caso, ele acorda o sonhador. Um estímulo como a sede, por exemplo, pode não ser percebida, pode resultar em um sonho que figura sua satisfação ou, caso muito intensa, promover o despertar. “Em certo sentido, todos os sonhos são sonhos de comodidade”; eles servem ao propósito de prolongar o sono, ou seja, evitar o despertar. Por isso “o sonho é o guardião do sono, e não seu perturbador.” (pg. 256).

Visando a manutenção do sono, entre as interpretações possíveis de algum estímulo, vence aquela que demanda menos atenção psíquica, exige menos atividade por parte das funções cognitivas superiores do sujeito, ou seja, que é mais compatível com “a censura absolutista exercida pelo desejo de dormir”. Vence a interpretação que melhor se adapta às moções pulsionais.

Os estímulos nervosos externos e os somáticos internos formam um núcleo para o qual se busca uma realização de desejo. “O sonho não pode fazer outra coisa a não ser figurar a realização de um desejo numa situação; ele se encontra, por assim dizer, diante da tarefa de procurar um desejo que possa ser figurado como realizado pela sensação atual”.  

Por fim, Freud compara os sonhos com os sintomas neuróticos: são formados à partir de desejos recalcados por serem considerados capazes de produzir angústia na consciência. As fontes do sonho mencionadas aqui oferecem a matéria-prima para que esses desejos consigam transpor a barreira da censura e conquistar a satisfação sem geração de angústia.

D – Sonhos típicos

A semelhança entre os sonhos de muitas pessoas permite concluir pela existência de elementos simbólicos universais. É típico, por exemplo, sonhar que estamos nus, sonhar com a morte de pessoas queridas, sonhar que voamos, que caímos ou que estamos paralisados.

O sonho de estar nu é geralmente acompanhado de vergonha e embaraço. Freud constata que na base destes sonhos existe uma lembrança prazerosa da primeira infância, quando nos era permitido ser visto com pouca ou nenhuma roupa. Naturalmente, perdemos essa liberdade com o passar do tempo, e os desejos exibicionistas associados a ela precisaram ser recalcados. Além disso, o sonho também nos remete ao paraíso bíblico, lugar utópico que dispensa o uso de roupas. A presença de outras pessoas é fundamental para a satisfação do desejo exibicionista infantil recalcado. Trata-se de pessoas que um dia despertaram nosso interesse sexual, mas que por ação da censura ficaram irreconhecíveis ou indiferente à nossa condição no sonho. A sensação desagradável é produto da ação de um segundo sistema psíquico, responsável pelo recalque dos desejos que lutam por encontrar representação.

Freud teve uma paciente que, certa vez, sonhou com a morte de seu sobrinho porque assim seria possível rever, depois de muito tempo, o homem pelo qual ela ainda estava apaixonada. O aspecto afetivo do sonho, nesse caso, estava centrado neste desejo, e não na perda do sobrinho. Fora casos assim, nos quais a morte serve para ocultar algum outro desejo, o sonho da morte de pessoas queridas é acompanhado de dor e sofrimento. Apesar disso, tais sonhos expressam o real desejo de que a pessoa em questão morra.

Para compreender essa afirmação, é preciso considerar que esse desejo não precisa ser atual. Basta que um dia o sujeito sonhador tenha desejado a morte da pessoa em questão, como é comum na relação entre irmãos pequenos. Assim, por exemplo, o sonho do adulto pode ser a expressão de um desejo de morte pelo irmão mais novo que, ao nascer, lhe tirou do lugar central que ele ocupava na vida dos pais. Sabemos a que ponto pode chegar o egoísmo nos sonhos. O que mais uma criança pequena poderia odiar do que um concorrente que ameace o seu reinado absolutista na família? Além disso, a morte, para as crianças, não tem o mesmo sentido que tem para os adultos. Para elas, morrer equivale a simplesmente ou “ir embora”.

Da mesma forma que se sonha com a morte de irmãos e outras crianças, pode-se sonhar com a morte de um dos pais. Com a intensidade dos sentimentos característica da infância, e tendo em vista a ação da educação sobre seus impulsos e vontades, nada impede que a raiva seja representada, em algum momento, pela morte de um dos pais. Além disso, Freud observou que é mais comum os homens sonhar com a morte do pai e as mulheres sonhar com a morte da mãe. Isso porque, segundo ele, temos a tendência de querer a eliminação de todos que sentimos ser rivais no amor.

Aqui, pela primeira vez, Freud apresenta oficialmente a lenda de Édipo Rei, que deu nome ao famoso complexo que se tornou um pilar da psicanálise. “O rei Édipo, que matou seu pai Laio e casou com sua mãe Jocasta, é apenas a realização dos desejos de nossa infância” (pg. 285). Depois de termos desenvolvido nossa moralidade e consciência esses pensamentos nos causam indignação e assombro. Outro exemplo literário do poder dos desejos parricidas e incestuosos é encontrada em Hamlet, de Shakespeare: Hamlet pode fazer tudo, so não pode se vingar do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar dele junto a sua mãe, o homem que lhe mostra a realização de seus desejos infantis recalcados. O horror que deveria movê-lo à vingança é assim substituído por autocensuras, por escrúpulos de consciência que o repreendem porque ele próprio, literalmente, não é melhor do que o pecador que deveria castigar” (pg. 288).

Dois fatores que podem contribuir para o surgimento destes sonhos é a falta de preparação da censura para um conteúdo tão monstruoso e um resto diurno de preocupação com a pessoa querida (o desejo de morte pode se mascarar de preocupação, durante o dia).

Outros sonhos típicos incluem voar ou cair. Eles apenas repetem impressões infantis, quando brincadeiras com a gravidade traziam grande excitação e prazer. Sonhar que estamos paralisados, como já foi comentado, geralmente representa uma forma de dizer “não”, de recusa.

É importante comentar que nesta parte Freud faz um desvio importante para dizer que o sonho, pelo seu caráter extremamente egoísta, sempre inclui o Eu do sonhador. Em qualquer análise é possível encontra-lo.

6 - O TRABALHO DO SONHO

O método de interpretação de sonhos de Freud é inovador por reconhecer que o sentido de um sonho não está no seu conteúdo manifesto, mas nos pensamentos oníricos latentes que podem ser acessados através dele. Este capítulo é dedicado à investigação das relações possíveis, bem como dos seus respectivos processos operacionais.

Uma primeira relação possível é de tradução: o conteúdo manifesto surge como uma tradução estranha, pictográfica, dos pensamentos oníricos latentes. É preciso reconhecer ligações sígnicas: “substituir cada imagem por uma sílaba ou palavra que por meio de uma relação qualquer, possa ser figurada pela imagem. As palavras assim combinadas não carecem mais de sentido, mas podem resultar na mais bela e mais profunda das sentenças poéticas.” (pg. 300).

A – O trabalho da condensação

Toda associação estabelecida a partir de um conteúdo manifesto está necessariamente vinculada com processos de pensamento latentes, que já ocorreram ao sonhador, por mais que ele não lembre, não tenha prestado atenção ou não tenha tido acesso a ele. Ou seja, quando se busca o sentido de um sonho, é impossível deparar-se com uma associação que não tenha relação com o seu conteúdo manifesto (logo, também com os pensamentos latentes). Um simples fragmento onírico manifesto pode ser a representação condensada de muitos pensamentos latentes. Como se realiza essa condensação? Quais condições que determinam a escolha do seu conteúdo?

Ao analisar novamente o sonho da monografia botânica fica claro que muitas associações podem divergir de um único fragmento do conteúdo manifesto, e que, também, vários fragmentos do conteúdo manifesto podem convergir para um único pensamento latente.

Outro sonho exemplar para tratar do mecanismo da condensação é a injeção de Irma, que tem na sua representação a condensação de pensamentos relativos a mais de seis pessoas. A condensação pode ser elaborada de diversas maneiras (unindo traços, acentuando semelhanças, suprimindo diferenças, etc.). Sobre o mecanismo da condensação, Freud esclarece que o conteúdo manifesto pode ser sobredeterminado na forma de compromisso entre dois ou mais grupos de pensamentos latentes. Assim, algum elemento aparentemente insignificante do conteúdo manifesto pode ser fundamental para a descoberta do sentido de um sonho.

Freud cita alguns de como a condensação também acontece com palavras. O sonho as trata como objetos, efetua combinações e inventa neologismos cômicos e curiosos. Em todos os exemplos o conteúdo latente pode ser descoberto através da associação livre produzida a partir de fragmentos da palavra decomposta. Mesmo quando as palavras e frases de um sonho parecem apenas a reprodução de um resto diurno, ela necessariamente surgiu no conteúdo manifesto pela sua carga condensada nos pensamentos latentes.

B – O trabalho do deslocamento.

Este segundo trabalho do sonho corresponde com a transformação da valência de um elemento ou conteúdo. Aquilo que é importante em um nível pode não ser em outro. É um movimento defensivo para driblar a censura. Para saber quais conteúdos de fato são importantes Freud sugere que prestemos atenção aos temas que se repetem, elementos frequentes e pontos de convergência associativo. “Assim, podemos supor que no trabalho do sonho se manifesta uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos dotados de alta valência psíquica de sua intensidade e, por outro lado, pela via da sobredeterminação, cria novas valências a partir de elementos de valência inferior, as quais entram então no conteúdo onírico” (pg. 331)

C – Os recursos figurativos do sonho

Todas as associações produzidas a partir do conteúdo manifesto, mesmo que não corresponda exatamente com pensamentos latentes (como é o caso, geralmente), é importante para encontra-los. Se, de fato, o sentido de um sonho só pode ser descoberto ao acessarmos os pensamentos latentes que lhe deram origem, Freud aborda o problema da conversão dos pensamentos latentes (um complexo de pensamentos e lembranças de construção complicadíssima, que partem de mais de um centro e que estabelecem diversos pontos de contato e de associações lógicas) em conteúdo manifesto (imagético). Como o conteúdo manifesto expressa relações do tipo “como se...”, “quando...”, “caso...” “embora...”, “por que”, “ou – ou”? Quais nexos são aniquilados? Por mais que o material de um sonho possa ser complexo, a sua forma é sempre simples: imagens. Se sonhamos com vozes, falas e sentenças, elas são apenas cópias de restos diurnos ou alusão a acontecimentos contidos nos pensamentos oníricos.

O trabalho do sonho é semelhante ao do pintor. Ele unifica o material latente em uma situação ou processo que possa ser figurado. Dessa forma, aquilo que aparece unido, junto, ou de forma simultânea, deve necessariamente ter algum nexo lógico também nos pensamentos latentes. Nenhuma combinação se dá por acaso. Um tipo de nexo lógico é a causalidade (relações de causa e efeito do tipo “se... então...”). Nesse caso, o modo de figuração “consiste em apresentar a oração subordinada sob a forma de sonho preliminar e então acrescentar a oração principal”, ou apresentar uma sequência de eventos (que pode tanto manter quanto inverter a ordem cronológica correspondente com a dos eventos nos pensamentos latentes).

O trabalho de figuração pode modificar a valência afetiva, transformar o ativo em passivo, apresentar um mesmo pensamento latente a partir de pontos de vista diferentes, etc. “O sonho não consegue representar de forma alguma a alternativa ‘ou – ou’”. A forma mais próxima de representar essa alternativa é através de uma simples adição (substituindo o “ou – ou” pela conjunção “e”). Outra impossibilidade no campo manifesto é a expressão do “não”. O recurso, neste caso, é formar antíteses; como tornar positivo o que é negativo. Por vezes, o mesmo conteúdo latente pode dar origem a duas cadeias de ideias opostas, como uma consoladora (superficial) e outra reprovadora (mais profunda).

É importante observar que dois centros de gravidade de um pensamento latente podem apresentar ramificações convergentes, as quais são figuradas no conteúdo manifesto como elementos aparentemente insignificantes. Seu valor consiste justamente como chave de entrada para os núcleos de elementos latentes significativos.

O sonho tem múltiplos recursos para representar relações lógicas de concordância, de semelhança, de contato, de congruência (“assim como...”). Uma delas é concentrar vários conteúdos em uma unidade (processo denominado de identificação, por ser aplicado geralmente a pessoas e lugares), outra forma é através da criação de uma formação mista (unificação de traços para formação de uma representação hibrida). A inversão ou transformação no contrário é um dos recursos preferidos para o sonho driblar a censura, frequentemente usado para ocultar desejos homossexuais.

Freud apresenta o exemplo de um rapaz que sonha que seu pai lhe xinga por chegar tarde em casa. O sonho é a expressão distorcida do desejo de que o pai morra. Em análise fica claro que o sonho ocorreu após ele ouvir da mãe a seguinte ameaça: “espera só até o teu pai voltar”. Ele ficou com medo e muito irritado quando seu pai apareceu. Fica evidente que o sonho é uma tentativa de expressar o desejo de que seria bom se o pai nunca mais voltasse (o equivalente a morrer).

Algumas caraterísticas formais do sonho, como a sua intensidade e a nitidez também precisam ser consideradas. A regra geral afirma que se torna intenso aquele elemento pelo qual a realização de desejo se expressa. Contudo, devido à natureza do desejo, da existência da censura e das operações defensivas disponíveis, não necessariamente o que é mais importante (no nível latente) corresponde ao que é mais nítido (no nível manifesto). Entre o material onírico e o sonho manifesto ocorre “uma completa transvaloração de todos os valores psíquicos.” Através de um elemento onírico fugaz pode-se encontrar algo relevante dos pensamentos oníricos latentes. Grande parte da nitidez de um elemento resulta da ação da condensação. Deve-se considerar que até mesmo a forma de um sonho (confuso X organizado; simples X complexo; nítido X nebuloso) pode ser a expressão de um pensamento latente.

As palavras usadas para contar um sonho são tão importantes quanto as associações produzidas a partir dos seus elementos. Quando se diz que uma parte do sonho está borrada, ou que apareceu um vazio, uma lacuna, essas expressões indicam o teor do material recalcado. Borrar-se, por exemplo, é frequentemente faz referência à covardia ou às fezes; uma lacuna pode simbolizar a presença da vagina.  

A pressão constante do conteúdo recalcado pode encontrar grande resistência nas suas primeiras tentativas de fazer-se figurado, e assim produzir sonhos muito distorcidos e tímidos. Com o passar do tempo, sua insistência tende a sobrepujar a barreira da censura, e assim produzir sonhos mais nítidos quanto ao seu sentido original.

D – A consideração pela figurabilidade

Já vimos que não existe uma relação direta entre o conteúdo latente e o manifesto. O trabalho do sonho pode romper os vínculos, nexos e associações entre representações; pode deslocar a intensidade de uma representação para outra; pode produzir representações substitutas; e pode condensá-las (fusão ou composição mista). Independente das transformações aplicadas ao conteúdo latente, o trabalho do sonho precisa levar em consideração a figurabilidade do seu conteúdo, isto é, a possibilidade de transformá-lo em uma imagem concisa, uniforme e com poder expressivo.

O trabalho do sonho não é apenas semelhante ao do pintor, mas também com o do poeta, que precisa articular um verso que expresse a informação desejada e que também esteja em congruência com o verso anterior. O uso da ambiguidade se presta bem à esta função. Assim, por exemplo, é comum não sabermos se o conteúdo manifesto deve ser compreendido de maneira literal ou figurada, se faz referência ao presente ou ao passado, se teve a valência invertida ou não, etc. Sendo o trabalho do sonho semelhante ao do pintor e do poeta, a interpretação exige do analista trabalho equivalente ao do tradutor de hieroglifos.

Exemplos de consideração pela figurabilidade: a) Ver-se aplainando um pedaço de madeira pode ser a forma figurada do desejo de melhorar um trecho de um ensaio ou texto. b) Ver-se introduzindo uma faca debaixo de uma torta composta por diversas fatias pode ser a forma figurada do desejo de avançar na compreensão metafísica das diversas camadas da psiquê. c) Ver-se procurando pela ponta de um fio em um novelo de lã pode ser a forma figurada de um desejo de reencontrar alguma linha de raciocínio importante perdida ao longo do dia.

O trabalho do sonho não precisa criar símbolos, pois lhe basta fazer uso daqueles já existentes no inconsciente. Muitos deles tem um significado universal, como aqueles presentes lendas, costumes, no folclore, na mitologia, nos contos de fadas, etc. “O sonho se serve dessas simbolizações, que já se encontram prontas no pensamento inconsciente porque satisfazem melhor as exigências da formação do sonho em razão de sua figurabilidade e porque na maioria dos casos também não estão submetidas à censura”. Muitas vezes esses símbolos estão presentes de forma chistosa ou alusiva. Assim, por exemplo, a casa pode representar o corpo; os afazeres da cozinha podem representar a vida sexual; flores são relacionadas com a sexualidade, etc.

E – A figuração por meio de símbolos no sonho: outros sonhos típicos.

Considerando a existência de símbolos universais, quando a técnica de análise dos sonhos inventada por Freud (baseada nas ideias que ocorrem livremente ao sonhador) mostra-se incapaz de superar algum obstáculo, de forma que o sentido do sonho parece resistir a qualquer interpretação, pode ser útil recorrer ao método da interpretação simbólica (como a velha técnica dos “manuais dos sonhos”). Símbolos universais parecem determinados por uma natureza genética, uma identidade conceitual primitiva, que remete à origem da linguagem. Esse fenômeno foi comprovado através da experiência pessoal e clínica de Freud e corroborado pela sensibilidade intuitiva de W. Stekel.

Eis alguns exemplos citados por Freud: a figura do imperador e da imperatriz (ou o rei e a rainha) geralmente representam os pais; príncipes e princesas representam o sujeito criança; objetos longos como facas, armas, espadas, chapéu e gravatas representam o órgão genital masculino; latas, potes e caixas, representam o membro feminino; fechaduras e chaves,  bem como o ato de subir e descer escadas tem um nexo comprovado com a relação sexual; cama e mesa simbolizam o casamento; pontes e montanhas arborizadas podem ser a figuração dos genitais; cortes, amputações e a perda de cabelos e dentes são representações da castração; muco, lágrimas, urina e esperma são substituídos uns pelos outros.

Entre muitos exemplos interessantíssimos, Freud apresenta algumas declarações curiosas, como “a investigação psicanalítica absolutamente não conhece diferenças fundamentais entre a vida psíquica normal e a neurótica, mas apenas diferenças quantitativas”. No sonho “nada é supérfluo, cada palavra é um símbolo”, “... a maioria dos sonhos das pessoas adultas trata de material sexual e expressa desejos eróticos”, “nenhum outro impulso precisou experimentar desde a infância tanta repressão quanto o impulso sexual em seus inúmeros componentes; nenhum outro deixa tantos e tão fortes desejos inconsciente, que agora agem no estado de sono produzindo sonhos.”.

F – Exemplos de cálculos e falas no sonho

Alguns modos de representar o conteúdo latente revelam o uso que o trabalho do sonho faz da amplitude, da duplicidade e da ambiguidade dos sentidos das palavras. O sonho de jogar animais em alguém pode ser a expressão de um desejo de xingar (em português dizemos “soltar os cachorros” em alguém). Sonhar que se está sentando a uma mesa em frente ao imperador pode representar o desejo de fazer frente ao pai. Animais ferozes geralmente equivalem ao pai da infância do sonhador. Através de um sonho de beijos e trocas afetivas em um automóvel pode-se ocultar elementos importantes do autoerotimo do sonhador. Um sonho de canibalismo pode ser a representação de um desejo sexual por alguma pessoa (o sonho faz uso da típica expressão figurada “comer alguém”, muito usada em português).

Umas das pacientes de Freud, por exemplos, sonhou com as horas 5:15pm. A análise revelou que esse número corresponde exatamente com a sua idade (cinco anos e três meses) quando nasceu seu irmão mais novo, também presente nos pensamentos latentes. Outra paciente sua sonhou que precisava pagar algo, sua filha lhe deu 3 florins e 65 cruzados, ela disse-lhe “o que você está fazendo? Custa só 21 cruzados!”. Em análise, ficou evidente a relação entre os 3 florins e 65 cruzados com os 365 dias do ano, bem como seu o desejo de diminuir o valor das sessões (“time is money”). Em outro sonho, que ficou bastante conhecido no meio psicanalítico, uma jovem “está sentada com seu marido no teatro, e uma parte da plateia está completamente desocupada. Seu marido lhe conta que Elise L. e seu noivo também quiseram vir, mas conseguiram apenas lugares ruins, três por um florim e cinquenta cruzados, e esses eles não puderam aceitar. Ela acha que não teria sido nenhuma desgraça se tivessem aceitado.”. Após a análise, fica claro que a jovem está arrependida por ter se apressado para casar tão cedo. Ela acredita que se tivesse tido paciência teria conseguido um marido “até cem vezes melhor (...) poderia ter comprado três maridos desses”. O trabalho do sonho não faz cálculos. Ele apenas reúne os números dos pensamentos latentes da mesma forma que trata todas as outras representações como nomes e falas. Ele é capaz de dar um novo sentido para elas.

Por fim, Freud compartilha um sonho pessoal que expressa uma identificação com o personagem Brutus, da peça Júlio César, de Shakespeare; faz referência à lembranças infantis (amizade com seu sobrinho), e resulta de uma série de experiências recentes e do dia anterior.

G – Sonhos absurdos: as produções intelectuais no sonho.

O caráter absurdo e incongruente dos sonhos é apenas um aspecto aparente. Eles são determinados por pensamentos latentes geralmente relacionados com a morte do pai do sujeito. Existem vários exemplos de sonhos que comprovam essa teoria. Em um deles, um homem sonhou que se u pai (já falecido) sofreu um acidente e ficou com o crânio bizarramente achatado, mas vivo. Este sonho surgiu no contexto da contratação de um artista que fizesse o busto do pai. O sujeito ficou muito descontente com o resultado do trabalho do artista, que não soube reproduzir o crânio do seu pai (ficou um absurdo, um desastre). O mesmo sujeito demonstra acreditar em uma equivalência entre uma pessoa e a sua representação (em esculturas, fotos, pinturas, etc.).

Freud relata um sonho pessoal de caráter absurdo no qual seu pai aparece como testa de ferro de uma outra pessoa, que fez o papel de pai em sua vida. Em resumo, no sonho Freud manifesta-se contra aqueles que criticam o tempo de duração do trabalho analítico, bem como defende-se perante as críticas relativas ao longo tempo que levou para se formar em medicina. Ele também revela o desejo latente de ter nascido filho de um pai que fosse professor ou de uma geração mais nova, pois isso facilitaria seu progresso na vida.

Sonhar com pessoas mortas também pode representar o desejo de saber “o que fulano diria se estivesse vivo para ver isso?”, ou uma satisfação por ele não estar presente para ver algum evento que lhe desagradaria. Pode ser a figuração direta do desejo da morte de alguém, mas transformado pela censura no seu inverso (a pessoa aparece viva no sonho). Estes sonhos também podem representar uma indiferença (tanto faz, pra mim, se fulano está vivo ou morto), como forma de negar a ambivalência, (caso fosse de fato indiferente nem sonharia com essa pessoa).

Em outros exemplos Freud mostra-se irritado pelas críticas que estão sendo lançadas às suas ideias psicanalíticas (sua criação) e preocupado com a vida herança teórica e material que vai deixar para os seus filhos (judeus na Europa no início do século XIX).

Os pensamentos oníricos nunca são absurdos. Apenas na forma de expressão. Tudo que surge como julgamento faz parte do material latente, e por isso não é uma produção original do manifesto. O que sentimos ao acordar refere-se aos pensamentos latentes, e não ao conteúdo manifesto. Todas as ideias e conclusões, por mais brilhantes que pareçam, apenas refletem pensamentos latente, e por isso não são criações do conteúdo manifesto. Basta descobrir qual traço lógico efetivou a união das representações que determinaram a aparência absurda (criativa) do seu conteúdo.

Qual a condição do solo no qual nasce um sonho? Irritação, amargura e escárnio? Sonhos absurdos podem expressar a consideração de que algo é absurdo na realidade. Geralmente é assim que se expressa uma crítica, uma zombaria.

H – Os afetos nos sonhos

“Quando tenho medo de ladrões no sonho, os ladrões sem dúvida são imaginários, mas o medo é real”

Como já vimos, o trabalho do deslocamento transfere o afeto de uma representação para outra. Dessa forma, enquanto o afeto permanece constante, a sua representação é variável. Trata-se do mesmo trabalho psíquico que determinou a intensidade do medo de uma histérica, ou a insistência de pensamentos do obsessivo. No caso dos sonhos, por exemplo, ver-se diante de leões (conteúdo manifesto) pode não corresponder com um afeto de medo que seria justificado no caso de uma situação real. Para onde foi o medo? Ou melhor, o que os leões podem simbolizar para o sonhador? Outro exemplo é o caso da mulher que sonhou com a morte de um sobrinho querido. No sonho ela não sentiu tristeza nem sofreu pela morte do menino, pois o foco do sonho era a satisfação do desejo de reencontrar  uma determinada pessoa que só se faz presente em funerais de familiares.

O deslocamento dos afetos também pode produzir o fenômeno inverso: circunstâncias aparentemente banais, inofensivas ou indiferentes podem produzir reações afetivas intensas. Cabe ao analista procurar pela representação que justificaria o afeto (desfazer o deslocamento) para compreender o sonho.

Para todo afeto emergente no conteúdo manifesto, há um equivalente nos pensamentos latentes, não importa se foi invertido, suprimido ou deslocado. Toda moção psíquica tem o poder de determinar não apenas comportamentos, mas também pensamentos, devaneios e sonhos. Impedidos de se manifestar por vias motoras, suspensas durante o sono, elas surgem nos sonhos. Quanto maior o conflito entre diferentes moções afetivas, mais complexos resultam os sonhos. Além de lutar entre si, elas também precisam lutar contra a oposição da instância censora. “A distorção dos afetos seria então o segundo resultado da censura onírica, assim como a distorção onírica foi o primeiro”.

Freud apresenta vários exemplos de como os afetos estão presentes nos sonhos. Em um deles pode-se ver como como um afeto é transformado no seu oposto. Isso é determinado pelo princípio do contraste, segundo o qual toda ideia carrega consigo a representação do seu contrário (futuramente Freud escreverá um texto sobre o sentido antitético das palavras primitivas). A própria “realização de desejos não é outra coisa senão a substituição de uma coisa desagradável pelo seu contrário.”. Assim surgem os típicos sonhos hipócritas, por exemplo, nos quais somos queridos e gentis diante de pessoas que não gostamos. Em 1911 Freud acrescentou, aqui, considerações sobre sonhos que realizam desejos fundamentalmente masoquistas, nos quais não há determinação do sonho pela inversão do seu contrário afetivo, mas a própria realização do desejo punitivo.

Por fim, Freud considera o fenômeno da sobreposição dos afetos: “no trabalho do sonho, fontes de afeto que podem fornecer o mesmo afeto se reúnem para a formação deste”. Em outras palavras, uma circunstância tem o seu valor afetivo atenuado (sobredeterminado) pela associação com alguma experiência (ou fantasia) recalcada. Freud apresenta o exemplo da sua irritação com o comentário de um aluno que lhe pede para ser sigiloso apenas porque esta circunstância lhe tocou na lembrança de censuras que sofreu no passado, quando não fora. Da mesma forma, por exemplo, um pai que não pode punir o filho adolescente por alguns comportamentos pessoais que lhe desagradam, torna-se muito cruel quando encontra um pretexto para deixá-lo de castigo. É preciso ter sempre em mente, em qualquer análise, que devido a existência de uma instância censora, os sonhos resultam de um ardiloso trabalho de dissimulação.

I – A elaboração secundária

Apenas a condensação, o esforço para escapar da censura e a consideração pela figurabilidade não conseguem explicar por que podemos construir críticas de admiração, sentirmo-nos incomodados ou resistentes em relação a algum fragmento onírico mesmo durante o sono; nem como somos capazes de produzir um volume desproporcionalmente grande de sonhos em um curto período de sono. Por isso Freud concluiu pela inclusão da elaboração secundária como um quarto fator determinante na construção dos sonhos.

A produção de pensamentos críticos sobre o sonho enquanto estamos sonhando é uma estratégia desesperada da censura para situações nas quais ela se sente tomada de surpresa por algum conteúdo angustiante ou desagradável. Assim ela pode produzir pensamentos desdenhosos do tipo “isso é só um sonho. Não preciso me preocupar”. Quanto ao volume absurdo de sonhos que podemos ter em pouco tempo real de sonho, isso acontece porque a elaboração secundária insere no sonho materiais pré-consciente já prontos, como fantasias e devaneios. Isso é comum, por exemplo, quando o simples som do despertador é usado para figurar um longo sonho de uma viagem de trem que enfim chega à estação e toca o sino para avisar os passageiros.

Além de construir julgamentos críticos sobre o sonho dentro do sonho, e de acrescentar um gigantesco volume de informações que não corresponde com o período real de tempo que durou o sono, a elaboração secundária também é responsável pelo caráter coerente do sonho, que possibilita sua recordação em vigília. Trata-se de uma função constante que busca tornar o sonho ordenado, natural, sem lacunas nem contradições. Em outras palavras, ela constrói uma fachada para o sonho.

Por fim, sobre a interpretação, “...fica a regra de desconsiderar em todos os casos a coerência aparente do sonho, por ser de origem suspeita, e, partindo tanto do claro quanto do confuso, tomar o mesmo caminho de retorno ao material onírico.”.

“Podemos realmente imaginar que a consciência adormecida diga a si mesma: ‘Lé vem nossa mestra, a consciência desperta, que dá um valor extraordinário à razão, à lógica e afins. Rápido! Pega as coisas, coloca-as em ordem, não importa qual, antes que ela entra para tomar posse do lugar’.”

Antes de entrar no famoso capítulo VII Freud apresenta um resumo de suas ideias sobre o trabalho dos sonhos no último parágrafo da parte seis. Recomendo.

 

7 - SOBRE A PSICOLOGIA DOS PROCESSOS ONÍRICOS

Freud inicia este clássico capítulo sete relatando o sonho de um pai que perdeu o filho. No sonho, o pai vê “a criança parada ao lado da sua cama, pega seu braço e lhe sussurra em tom de repreensão: ‘Pai, você não vê que estou queimando?’. Ele acorda, nota um clarão intenso que vem do quarto onde está o corpo, corre até lá, encontra o vigia idoso adormecido e as roupas e um braço do querido cadáver queimados por uma vela que caíra acessa sobre ele”. Ele apresenta este sonho para que vejamos o quanto ainda é preciso progredir para encontrar uma teoria que explique os sonhos como processos psíquicos, sua estrutura e dinâmica de forças.
 

A – O esquecimento dos sonhos

Se levarmos em consideração que a nossa consciência desperta tem acesso apenas a restos fragmentados, mutilados, adulterados e repleto de lacunas, como ter garantias de que conhecemos o sonho que queremos interpretar? Mesmo não sendo tão incoerente quanto somos capazes de lembrar, nem tão bem-acabado como somos capazes de relatar, o seu valor como formação do inconsciente permanece. Isso porque não existe acaso, arbitrariedade ou aleatoriedade nos processos psíquicos. Freud busca suas determinações lógicas. A mesma instância psíquica responsável pela ação da censura aplicada aos pensamentos latentes também promove resistências frente às forças conscientes que tentam acessá-los. Ou seja, ela opera em dois sentidos. A intensidade da força da censura e das resistências indica a importância do conteúdo latente que tentam esconder. Assim elas apontam o caminho para o analista descobrir onde encontrar o significado do sonho. Quando superamos essa força em um dos sentidos, também superamos no outro, as distorções e o esquecimento de um sonho (ou de partes dele) se desfaz.

A redução da intensidade da censura da consciência, durante o sono, é condição de possibilidade para o sonhar. Com o seu reestabelecimento, logo após o despertar são apagados da lembrança não só o sonho, mas também todas as associações e interpretações que a mente consciente conseguiu produzir sobre ele. Assim, o esquecimento do sonho, de seus derivados e todos os fatores que possa atrapalhar o processo de análise de um sonho pode ser considerado uma forma de resistência. Assim, uma análise que consiga superar completamente essa força é capaz de trazer à consciência todo o material esquecido.

 “O procedimento na interpretação dos sonhos é idêntico ao empregado na resolução dos sintomas histéricos...”
 

O analista precisa tomar aquilo que lhe é apresentado como uma escritura sagrada. Deve evitar críticas, parcialidades, preconceitos e juízos de valor; e tomar como verdade tudo o que lhe for dito, independente da insegurança e das dúvidas do relator. Pode ser útil, às vezes, pedir para que ele conte o sonho novamente, e assim avaliar como as defesas adulteraram o primeiro relato para construção do segundo, mais aceitável. As diferenças entre os relatos revelam os pontos fracos da resistência: O que a censura tenta proteger? Quais expressões foram deixadas de lado por parecerem perigosas? Todas as modificações merecem atenção. Às vezes basta um fragmento de um sonho para que se possa encontrar toda a cadeia de pensamentos latentes relacionada com a sua construção. Um desses fragmentos pode ser, por exemplo, uma expressão linguísticas.

Sonhos parecem não envelhecer com o passar do tempo. É possível interpretá-los muitos anos após o seu surgimento, com resultados até melhores, caso se tenha vencido resistências internas neste período. “Sonhos que ocorreram nos primeiros anos da infância e que não raro se conservaram na memória por décadas com todo o seu frescor sensorial quase sempre alcançam uma grande importância para a compreensão do desenvolvimento e da neurose do sonhador” (Freud, 1919). O sonho se comporta como um sintoma neurótico. Quais foram os primeiros sintomas? Quais persistiram? Ao analista cabe “trabalhar com perseverança, mas também com a mesma despreocupação pelo resultado”. Às vezes o melhor a fazer é dar uma pausa e retomar o trabalho de investigação outro dia.

Assim como um paciente deitado no divã, o sonhador deve relatar seu sonho livre de todas as representações-meta (aquelas representações que orientam o processo de reflexão consciente) e deixar-se levar por um elemento onírico. Ao analista cabe notar as ideias involuntárias que ele evoca, e quando encontrar um obstáculo (como o silêncio, supostamente devido à ausência de associações ou ao fim da narrativa) retomar a investigação a partir de outro elemento do sonho. Assim, a pessoa que sonha, bem como os pacientes neuróticos, deve seguir a clássica regra associação-livre, e o analista precisa ter sempre em mente que nada surge por acaso na sua consciência.

As associações de ideias, por mais frouxas e superficiais que possam parecer (como aquelas que parecem ligadas por assonância, ambiguidade, coincidência cronológica), podem ocultar ou substituir uma conexão profunda entre os elementos manifestos e latentes. Elas funcionam como uma ponte para o acesso aos pensamentos latentes. “Ou a censura se dirige apenas contra a ligação entre dois pensamentos, que, separados um do outro, escapam à objeção (...). Mas, em compensação, nos ocorre uma associação superficial entre os dois (...). Ou ambos os pensamentos sucumbem à censura devido ao seu conteúdo; então ambos não aparecem na forma correta, e sim numa forma modificada, substituída, e os dois pensamentos substitutos são escolhidos de tal maneira que reproduzem por meio de uma associação superficial a ligação essencial em que se encontram os pensamentos por eles substituídos.”

Pode-se perceber que a associação livre, ao abrir mão das representações-meta conscientes, entrega-se o fluxo dos pensamentos latentes, que possuem a sua própria representação-meta, desconhecida da consciente, e central para a compreensão do sentido do sonho. Esta representação-meta é justamente aquela que faz com que as associações psíquicas e as formações do inconsciente, como sonhos e sintomas neuróticos, não sejam aleatórias, orientados pelo acaso.

B – A regressão


Antes de apresentar seu esquema do funcionamento psíquico, Freud apresenta um resumo das suas ideias já apresentadas: 
“Os sonhos são atos psíquicos tão importantes quanto quaisquer outros; sua força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de não serem reconhecíveis como desejos, bem como suas múltiplas peculiaridades e absurdos, devem-se à influência da censura psíquica a que foram submetidos durante o processo de sua formação; à parte a necessidade de fugir a essa censura, outros fatores que contribuíram para sua formação foram a exigência de condensação de seu material psíquico, uma consideração pela figurabilidade em imagens sensoriais e - embora não invariavelmente - a demanda de que a estrutura do sonho possua uma fachada racional e inteligível para o produto onírico”.


Além disso, ele enfatiza o mecanismo da figurabilidade. Para realizar um desejo, o psiquismo transforma pensamento em imagens: “a característica psicológica mais geral e mais notável do processo de sonhar: um pensamento, geralmente um pensamento sobre algo desejado, objetiva-se no sonho, é representado como uma cena, ou, segundo nos parece, é vivenciado.”. Dessa forma o sonho apresenta como realidade imagética um processo que a consciência desperta produz como hipótese abstrata. Essa é a primeira transformação dos pensamentos oníricos. Neste sentido, o sonho da injeção de Irma é exemplar, pois figura Otto como culpado. Seu conteúdo corresponde com a fantasia consciente (sonho diurno) de Freud, que procede da mesma forma, mas conjugado em pensamentos, não em imagens sensoriais. Nos sonhos pode haver elementos que não receberam uma forma sensível, como pensamentos e conhecimentos. Da mesma forma, durante a vigília algumas representações podem ser transformadas em imagens sensoriais (exemplo: alucinações), mas nunca de forma tão notável quanto nos sonhos. 
A apresentação do esquema: Freud nos convida a imaginar um lugar psíquico responsável pela produção dos sonhos. “... um lugar no interior de um aparelho em que se forma um dos estágios prévios da imagem”. Freud denominou os componentes desse aparelho de sistema psi. Toda excitação percorre as instâncias desse sistema em uma direção específica: inicia com a entrada de um estímulo (interno ou externo), em uma extremidade sensível; e termina com a sua descarga em uma inervação, na extremidade motora. Como um aparelho reflexo:  

O que chamamos de memória é o equivalente a um traço, uma modificação permanente, deixado pelo estímulo na extremidade sensível. Como a sensibilidade precisa estar sempre fresca e receptiva, as marcas da memória devem ser armazenadas em outro lugar, em um segundo sistema, que “transforma a excitação momentânea do primeiro em traços permanentes”. Na memória, as percepções não se encontram separadas, mas associadas entre si. Essas associações obedecem a alguns princípios, como o da simultaneidade. “A associação consiste então no seguinte: em consequência de diminuições da resistência e de facilitações, a excitação se propaga de um dos elementos Mn preferentemente a um segundo do que a um terceiro elemento Mn”.

Tendo em vista a complexidade da memória, a excitação que entra pela sensibilidade não estabelece apenas uma associação (conexão do estímulo recebido com traços mnêmicos), mas várias. O estabelecimento das associações a partir da percepção é determinado pelo gradual de resistência oferecido pelos diferentes elementos Mn. Essa resistência parece menor entre elementos próximos espacial (semelhança qualitativa) ou temporalmente (contiguidade). Todo tipo de relação lógica entre estímulos / elementos / percepções favorece a associação com outros. O principal fator que impede uma associação é a possibilidade do seu estabelecimento produzir desprazer. Sem conexões, tais elementos ficam em um estado inconsciente. Mesmo lá, eles ainda produzem efeitos. Até mesmo o nosso caráter se baseia em marcas mnêmicas de impressões fortes, geralmente infantis. Outro fato notável, é que, para a consciência, a qualidade (cor, brilho, nitidez, saturação, altura, volume, etc.) de uma lembrança é muito menor que a qualidade de uma percepção. É quase como se memória e qualidade se excluíssem mutuamente. 


Como foi visto, existe uma instância psíquica que produz material perceptivo e outra que o submete a uma crítica. Dessa dinâmica resulta um material pensável / representável, e outro recalcado, censurado (denominado de inconsciente). Essa instância crítica atua como um guarda, um vigia, que fica na fronteira entre o conteúdo inconsciente e a consciência. Mais que um guarda, ela atua como um guia moral para as escolhas do sujeito que se acredita livre, autoconsciente e independente. Essa instância crítica está tão próxima do polo sensível (atuando como um guarda que impede que algumas associações sejam feitas) quanto do polo motor (influenciando comportamentos, pensamentos, escolhas...). 

 

Freud nomeou o sistema a extremidade motora de pré-consciente (pcs). Os processos excitatórios que emanam dele podem chegar à consciência sem maiores dificuldades (basta ter intensidade suficiente e receber a atenção do Eu). O pré-consciente também possui as chaves para a motilidade voluntária. “Chamamos de inconsciente o sistema que se encontra por trás do pcs, pois não tem acesso à consciência exceto por ele, uma passagem que obriga seu processo excitatório a tolerar alterações”. Ou seja, o desejo, força impulsora do sonho, é disponibilizado pelo inconsciente. A partir daí ele se prolonga no pré-consciente para obter acesso ao consciente. Este acesso é obtido apenas durante o sono e ao preço de modificações e disfarces.


Como entender os sonhos alucinatórios, como o da criança em chamas? Nestes casos, a excitação toma um caminho retrógrado. Ao invés de ir para a motricidade, ela se propaga no sentido do polo sensível, e, por fim, alcança a percepção. Assim, pode-se dizer que o sonho tem caráter regressivo. É a mesma dinâmica existente no recordar intencional. Trata-se de ir de uma representação até a sua matéria prima, suas marcas mnêmicas. A regressão produz a alucinação devido à condensação (a intensidade aderida às representações são transferidas de uma à outra). Assim, à partir dos pensamentos o sistema perceptivo atinge a plena vivacidade sensível. Em resumo, a regressão é processo pelo qual a representação volta a se transformar na imagem sensorial que foi sua fonte. 


Com base no conceito de regressão e com a ajuda de um esquema que permite a visualização hipotética do funcionamento psíquico é possível entender por que todas as relações de pensamento oníricos (latentes) se turvam ou até se perdem completamente por ocasião do trabalho do sonho. Trata-se de relações que não estão contidas nos primeiros sistemas Mn, mas muito além. Essas relações perdem expressividade em troca de intensidade perceptiva. “o encadeamento dos pensamentos oníricos é reduzido à sua matéria-prima”. 


O sono produz um afastamento da consciência do polo sensível e motor, ou seja, a pessoa fica mais desligada do mundo externo. Esse contexto favorece o refluxo da energia (regressão). Distante destes polos, dentre os vários sistemas Mn possíveis para o refluxo acontecer, ele vai ser direcionado pelas vias com maior investimento energético. Elas ficam como que facilitadas. Nos casos das alucinações, os pensamentos são transformados em imagens sensíveis pela sua relação com lembranças recalcadas (geralmente infantis). O pensamento capaz de produzir desprazer, relacionado com a lembrança infantil, está bloqueado pela censura, e por isso é arrastado para a regressão. Assim como no caso da formação dos sonhos, a formação das alucinações está submetida às mesmas transformações aplicadas pela censura. 


As experiências infantis, ou as fantasias derivadas delas, reaparecem nos sonhos muitas vezes pelo desejo vinculado a elas. A lembrança luta para se expressar, aspira por reanimação, mas como ela não é capaz de impor a sua vontade (ela esbarra na força da censura), ela interfere no fluxo dos pensamentos separados da consciência. Assim, “o sonho também poderia ser descrito como o substituto da cena infantil, modificado pela transferência para algo recente.” O conteúdo inconsciente faz uso de impressões recentes para tornar-se figurável com nitidez. Quando aspectos permitem uma associação, uma (ou mais) impressão recente serve de veículo para uma (ou mais) impressão infantil (real ou imaginária) se expressar. 


Resumidamente, a regressão é o efeito de uma resistência por um lado, e de uma atração por outro. A resistência decorrente da censura, e a atração proporcionada pela associação com impressões recentes. Isso tudo é favorecido pelo distanciamento da consciência do mundo exterior durante o sono. Neste processo, a compreensão da dinâmica de transferência de energia (deslocamento e condensação) é muito importante. 
A regressão também pode ser observada na formação de sintomas neuróticos. De certa forma, existem três tipos de regressões: a) tópica, no sentido do esquema já apresentado (M, Mn, MnII, MnIII, etc.); b) temporal, por recorrer a formações psíquicas mais antigas; e c) formal, pelos modos primitivos de figuração. Elas se fundem por que a formação mais antiga no tempo também é mais primitiva no seu aspecto formal e mais próxima da extremidade perceptiva. 


Por fim, Freud trata do sonho como uma regressão às condições mais remotas do sujeito e do homem como espécie. Ele cita Nietzsche, que afirma que no sonho “continua em ação um antiguíssimo fragmento de humanidade ao qual dificilmente ainda podemos chegar por via direta”. Eu cito Freud “Parece que o sonho e a neurose conservaram mais antiguidades psíquicas do que fomos capazes de supor...”

 

Parte C – Sobre a Realização de desejo


A força de realização de desejos está presente até mesmo no caso pesadelos (sonhos de angústia). Basta lembrar que aquilo que é prazeroso para um sistema (inconsciente) pode não o ser para outro (consciente). Com o surgimento da segunda tópica, e a substituição da oposição inconsciente X consciente, pela oposição eu X recalcado, isso fica ainda mais compreensível. O eu do sonhador pode reagir com indignação violenta frente a realização de um desejo inconsciente, e assim gerar a angústia presente no pesadelo. Outros sonhos desprazerosos também podem ser sonhos de autopunição (geralmente uma punição autoimposta em decorrência da percepção do ego de um desejo inadmissível em si mesmo).


A respeito dos sonhos dos adultos, já vimos que a ação da censura pode dificultar a descoberta do seu sentido. Independente dos estímulos atuais (sede, vontade de urinar, falta de calor, etc) ou recentes (restos diurnos) que podemos encontrar em um sonho, eles só se fazem representar por sua associação com moções pulsionais inconscientes (o recalcado infantil). É como se todo o restante do conteúdo pegasse uma carona nessa força para chegar até a consciência. No final das contas, ela é a força determinante do sonhar. Outros estímulos possuem apenas o poder de incitar a formação de um tipo de sonho ou de outro, mas nunca representam a sua força ou refletem o seu sentido.


Freud nos apresenta a famosa metáfora do capitalista e do empresário: “é bem possível que um pensamento diurno represente o papel de empresário para o sonho; porém o empresário, que, como se diz, tem a ideia e o ímpeto para realiza-la, não pode fazer nada sem capital; ele precisa de um capitalista para custear os gastos, e esse capitalista que disponibiliza o gasto psíquico para o sonho é sempre e inegavelmente, qualquer que seja o pensamento diurno, um desejo provindo do inconsciente (...) o próprio empresário pode contribuir com um pouco de capital; vários empresários podem recorrer ao mesmo capitalista; vários capitalistas podem contribuir com o necessário para os empresários”. 
Ao analisarmos um sonho é importante considerar que a intensidade sensorial de um conteúdo manifesto pode estar indicando a intensidade psíquica do conteúdo latente. Essa é uma forma possível de deslocamento. Além disso, um sonho que estava sendo sustentado por um desejo pode passar a ser sustentado por outro. No conteúdo manifesto essas mudanças de eixo geralmente resultam em cortes, mudanças bruscas, lacunas, rupturas, perdas de linearidade, etc. 


Sobre os restos diurnos: Podem ser desejos, moções psíquicas de qualquer tipo, ou simplesmente impressões recentes. Eles sempre estão presente nos sonhos. Principalmente aqueles detalhes mais indiferentes. Eles habitam o pré-consciente e servem de veículo para a emergência de uma representação inconsciente. Quer por falta de consideração pela atenção consciente ou por ter sido rejeitada, uma representação recente presta-se bem à associação com uma representação inconsciente pelo seu baixo teor de associações prévias. Ou seja, por não terem sido esgotada nas suas possibilidades associativas pelo trabalho de pensamento consciente, e também pela sua localização no pré-consciente, ela está mais disponíveis para estabelecer associações com materiais do inconsciente. 


O que é um desejo? O raciocínio de Freud é simples: A partir de uma falta, de uma carência, como são as necessidades corporais, surge uma experiência de satisfação, de forma que “a imagem mnêmica da percepção fica associada com o traço mnêmico da excitação da necessidade.” Em um terceiro momento, junto com o reaparecimento da carência / falta / necessidade, surge a imagem associada com a primeira satisfação. Assim, o desejo é a busca pela repetição da percepção ligada à satisfação da necessidade. Em um estado primitivo do aparelho psíquico, esse movimento pode ter produzido a alucinação do encontro com o objeto, mas como alucinações não bastam para produzir a satisfação de necessidades, é preciso deter a regressão e buscar outros caminhos (ação específica) para encontrar lá fora, no mundo exterior, a identidade perceptiva do objeto capaz de trazer satisfação.


Um segundo sistema, mais complexo, é responsável por deter a regressão e desviar o rumo da excitação (do interior para o exterior). Esse sistema controla o pensamento e a atividade motora voluntária. Os casos patológicos de enfraquecimento desse sistema ou de reforço excessivo das excitações inconscientes produzem os fenômenos da psicose. Sendo o desejo a única força que move o psiquismo, e a sua realização o seu único objetivo, seu trabalho não produz apenas sonhos mas também os sintomas psiconeuróticos. “... um sintoma histérico apenas surge quando duas realizações de desejo opostas, cada uma delas oriundas da fonte de um sistema psíquico diferente, podem coincidir numa só expressão”. A análise de um sintoma como os vômitos de uma histérica, por exemplo, pode revelar uma defesa contra a fantasia inconsciente de gravidez. Além disso, a sua perda excessiva de peso decorrente do sintoma pode servir como uma forma de autopunição. 


Não devemos negligenciar o desejo de continuar dormindo, facilmente reconhecível, por exemplo, quando o barulho do despertador entra disfarçadamente nos sonhos. Esse mesmo desejo foi realizado pelo pai que sonhou com o seu filho vivo ao invés de acordar imediatamente diante do clarão produzido pelo fogo no outro cômodo. 


Parte D – O despertar pelo sonho - A função do sonho – O sonho de angústia


Revisão: Como se produz um sonho


Inicialmente os restos diurnos despertam desejos inconscientes ou os desejos inconscientes abrem caminho até alguns restos diurnos. Ocorre o trabalho do sonho e os ajustes necessários para driblar a censura pcs. Até agora trata-se do mesmo caminho da formação de ideias delirantes e pensamentos obsessivos. Devido ao estado de sono do pcs, o sistema reduz suas excitações e o processo toma o caminho da regressão. Ele é atraído por grupos mnêmicos disponíveis como investimentos visuais (não traduzidos) e assim adquire figurabilidade. Em um primeiro movimento o processo veio do inconsciente ao pcs, e em um segundo momento ele retorna da fronteira da censura até as marcas de percepção. Agora ele consegue chamar a atenção e ser percebido pela consciência.


A consciência é excitável durante a vigília a partir do sistema perceptivo e das excitações de prazer e desprazer (resultante das conversões de energia no interior do aparelho). “Precisaremos adotar a hipótese de que essas liberações de prazer e de desprazer regulam automaticamente o fluxo dos processos de investimento.” Para possibilitar um fluxo de representações mais independente dos signos de desprazer o sistema pcs fez uma ligação com  o sistema mnêmico dos signos linguísticos. Assim a consciência deixou de ser apenas um órgão sensorial para tomar parte nos processos de pensamentos. Durante o sono, a superfície da consciência fica mais sensível para os estímulos do sistema P (percepção), afinal, o pcs quer dormir, relaxar. Seu trabalho é mínimo e está voltado para a percepção do sonho e a sua elaboração secundária. Neste sentido, o sonho sempre desperta o sonhador, pois consome parte da sua energia sob a forma de atenção. 


Toda essa linearidade é apenas didática. Na realidade os caminhos são trilhados simultaneamente. O trabalho do sonho provavelmente já começa durante a vigília e não termina quando acordamos. Se o sono é a noite, a vigília é o dia e os sonhos são como as estrelas no céu. Ou melhor, segundo Freud, sonhos são como os fogos de artifício: preparados durante horas e incendiados em um instante.


Mas como pode um sonho produzir o despertar? O sonho não deveria ser o guardião do sono? Freud pensa o sonho nas suas relações energéticas. O consentimento dado ao sonho deve representar uma economia da energia em comparação com o seu refreamento.


Como se dá a realização dos desejos inconscientes através do sonhar? Eles não deveriam ficar mais ativos ao tomarmos conhecimento deles? Como o sonho produz a satisfação? Os desejos inconscientes representam caminhos possíveis para descarga da excitação acumulada. Eles não se desfazem com o passar do tempo. Basta uma intensidade suficiente para que eles conduzam a excitação, ou seja, proporcionem a descarga (satisfação). Esse funcionamento fica evidente no caso dos sintomas neuróticos. Um ataque histérico, por exemplo, pode representar a descarga de um afeto reavivado. A tarefa da psicoterapia, neste sentido, é proporcionar o esquecimento decorrente do submetimento do inconsciente ao domínio do pcs. Melhor do que ficar entregue a si mesmo, a excitação inconsciente precisa ser ligada. Isso acontece naturalmente no processo onírico: os investimentos do pcs vão ao encontro do sonho (transformado em percepção) e liga a excitação inconsciente do sonho, tornando-a inofensiva como perturbação. 


A angústia produzida pelos pesadelos é como uma mosca que perturba quem está dormindo. Pode ser “mais útil e econômico permitir o desejo inconsciente, deixar-lhe aberta a via da regressão para que formasse um sonho e depois ligar e despachar esse sonho por meio de um pequeno gasto de trabalho pcs em vez de refrear o inconsciente durante todo o tempo do sono”. Trata-se de um jogo de forças, no qual o sonho assume a tarefa de colocar novamente sob o domínio do pré-consciente a excitação livre. O sonho funciona como uma válvula de escape que “ao mesmo tempo protege o sono do pcs em troca de um pequeno gasto de atividade da vigília. Assim ele se apresenta como um compromisso”. Ele trabalha para dois sistemas e cumpre dois desejos / ordens. 


Pode-se dizer que a função do sonho fracassa quando a tentativa de realização de desejo agita o pré-consciente com muita intensidade. Disso resulta o despertar completo. Após um tempo de regulação do organismo, a pessoa pode voltar a dormir. Os sonhos de angústia acontecem quando o desejo pertence a um sistema, o inconsciente, enquanto o sistema pcs rejeito e recalcou esse desejo. Assim como os sonhos, todos os sintomas neuróticos são formações de compromisso resultantes de um conflito entre sistemas. “assim, vamos propor a tese de que o recalque do inconsciente se torna necessário sobretudo porque o fluxo de representações no inconsciente, deixado a si mesmo, liberaria um afeto que originalmente tinha o caráter de prazer, mas desde o processo do recalcamento leva ao caráter de desprazer.” O recalque age sobre representações (não afetos) quando elas são capazes de produzir desprazer na consciência. O pré-consciente atua sobre essas representações estrangulando-as, inibindo o seu poder emissor de afetos. Quando cessa o investimento por parte do pcs, as excitações inconsciente recuperam o seu poder de despertar esses afetos. Portanto, o recalque é condição para a formação dos sonhos. Basta que as moções de desejo recalcadas tornem-se fortes o suficiente para botar a fabrica de sonhos em movimento. 


Freud encerra esse sub-tópico relatando exemplos de como a sexualidade está presente por trás dos sonhos de angústia.

 


Parte E – Os processos primários e secundários: O recalcamento


Durante a sua pesquisa bibliográfica, Freud refutou duas concepções típicas sobre os sonhos: de que ele não tem sentido e de que seriam apenas processos somáticos. Em uma breve revisão, Freud observa que os sonhos prosseguem as incitações e os interesses da vida de vigília, e, apesar de recolher resíduos indiferentes e de coisas que nos parecem pouco importantes, eles nunca se ocupam de ninharias. Isso porque existe uma diferença entre o conteúdo onírico (manifesto) e os pensamentos oníricos (latentes). Cadeias de ideias pré-consciente negligenciadas pela consciência em vigília, interrompidas ou recalcadas são fundamentais para a formação dos sonhos. Muito do que o sonho revela já está sugerido pelas fantasias conscientes. Tudo se passa conforme a lógica da mecânica associativa: transferências de intensidades entre representações. 


Todo o conteúdo onírico parece comprimido, condensado, e, ao mesmo tempo, distorcido e mutilado. Não apenas os restos diurnos tem participação especial na formação dos sonhos, mas também os estímulos atuais. Eles são reinterpretados de tal maneira que não perturbem o sono e sejam utilizáveis para a realização de desejo. A rapidez com que os estímulos externos parecem convertidos em longos sonhos decorre da sua disposição para efetuar conexão com materiais pré-formados disponíveis no inconsciente.


Apesar de ser uma produção involuntária e aparentemente aleatória, a riqueza e a complexidade dos sonhos revelam uma atividade intelectual de alto nível. O seu fluxo de representações é involuntário, mas plenamente lógico e dotado de um sentido. Já vimos que a sua causa, o seu motor, é um desejo oriundo do infantil; e a sua meta, a satisfação. O processo seria simples e óbvio se não fosse a existência da censura. Ela determinada as modificações necessárias do seu conteúdo para que ele possa ter acesso à consciência. Como resultado desse conflito de forças o conteúdo latente torna-se diferente do conteúdo manifesto. Cabe ao analista interpretar este para desvendar aquele.


Economicamente, tendo em vista que a força da censura opera com mais capacidade durante a vigília, o sonho funciona como uma válvula de escape da energia acumulada no sistema psíquico. Durante o dia essa energia pode encontrar descarga através da formação de fantasias e sintomas neuróticos, como um ataque de histeria, por exemplo. Para isso, basta que o nível de energia atinja o limiar da descarga. O material tornado inconsciente não se desfaz com o passar do tempo (o inconsciente é atemporal) nem com as descargas proporcionada por essas “válvulas de alívio” (formações do inconsciente). A tarefa da psicoterapia é proporcionar um esquecimento diferente daquele produzido pelo recalque. A psicoterapia deve submeter o inconsciente ao domínio do pré-consciente. 


Mas como acontece de algo ir para o inconsciente? Naturalmente, ao longo do dia, nos ocorrem muitos pensamentos diferentes. Não somos livres e poderosos ao ponto de pensar apenas aquilo que determinamos previamente. De certa forma, mais do que construções independentes da consciência, as ideias vêm até nós quando atingem determinado nível de investimento. Seja por falta de atenção, ou por efeitos da censura, a grande maioria delas não surge na consciência, são negligenciadas, abandonadas, interrompidas e reprimidas. A transferência de energia entre ideias acontece a partir das representações-meta inconscientes. Essas cadeias de ideias investidas podem perder a sua energia espontaneamente por um processo de difusão em todas as direções associativas (esquecimento de algo que nem se tornou consciente) ou podem conservar essa energia pelo seu poder de incorporação da excitação de outras representações-meta carregadas, e serem arrastadas para o inconsciente pela força da crítica (recalque). No inconsciente elas sofrem transformações que dão aos sonhos (e a todas as formações do inconsciente) um aspecto estranho e aparentemente inexplicável. 


A condensação, como vimos, nada mais é que o escoamento da intensidade de várias representações para apenas um único elemento. Este elemento é responsável pelo aspecto estranho do sonho. Esculturas antigas seguiam o mesmo princípio: um elemento mais importante era destacado pelo seu tamanho e pela qualidade da sua produção. O caminho de representações percorrido pela energia que se acumula é determinado por relações estabelecidas no pré-consciente e por lembranças do inconsciente. É um trajeto que forma representações intermediárias, como formação de compromisso. Um exemplo desse tipo de formação é um lapso da fala, ou seja, quando queremos dizer uma palavra mas acabamos dizendo outra. Esse tipo de deslocamento energético é responsável pelo efeito cômico de alguns chistes (que só podem ser produzidos quando o autor consegue ampliar o contato com o próprio inconsciente). No caso dos chistes, é comum haver associações por homofonia e literalidade. Freud também ressalta que pensamentos mutuamente contraditórios não se excluem no inconsciente. Eles co-existem lado a lado como se não houvesse contradição. Assim, eles podem se combinar (condensação) e se expressar como formações de compromisso.
Partindo da superfície do fenômeno Freud nos leva para os seus fundamentos. Ao longo do caminho ele nos apresentou hipóteses muito lógicas sobre o funcionamento do aparelho psíquico. Por ser o mesmo aparelho responsável pela produção de sintomas neuróticos, suas semelhanças ficaram evidentes. Tambem na histeria acontece de “pensamentos normais receberem um tratamento anormal e serem levados para o sintoma por meio de condensação, formação de compromisso, associações superficiais, encobrimento das contradições e eventualmente pela via da regressão”. Ele continua: “tal elaboração psíquica anormal de uma cadeia normal de ideias só ocorre quando esta se tornou a transferência de um desejo inconsciente que provem do infantil e se encontra recalcado”. Portanto, cabe mais algumas explicações sobre o mecanismo do recalque. 


Já vimos que o aparelho psíquico é um aparelho reflexo que trabalha no sentido de “evitar a acumulação de excitação e se conservar o mais livre possível de excitações”. Para isso ele faz uso da motilidade. Após registrar uma experiência de satisfação, toda acumulação de excitação passou a ser sentida como desprazer e a colocar o aparelho em atividade. “Tal corrente no aparelho, que parte do desprazer e visa o prazer, é o que chamamos de desejo; afirmamos que nada exceto um desejo é capaz de colocar o aparelho em movimento e que o fluxo da excitação dentro dele é regulado automaticamente pelas percepções de prazer e de desprazer.” O primeiro movimento do sistema pode ter sido um investimento alucinatório da lembrança de satisfação, mas devido a persistência do desejo, tornou-se necessária uma segunda atividade, ou a atividade de um segundo sistema, que produz um desvio no curso da excitação (que, até então estava dirigida para a percepção, causando a alucinação) no sentido da motilidade visando modificar o mundo externo “de tal maneira que a percepção real do objeto de satisfação pudesse entrar em cena.” Com o passar do tempo acontece um acúmulo de experiência de satisfação no sistema mnêmico, que passa a ser utilizado pela atividade do pensamento (envio experimental de quantidades pequenas da excitação) para determinar ações motoras cada vez mais eficazes no futuro.
Assim como as experiências de satisfação, as experiências de dor e pavor também são registradas na memória, com a diferença de que, ao contrário de procurá-las alucinatoriamente, o sistema tende a fugir delas, afastá-las para longe. Assim funciona o mecanismo do recalque. Neste ponto cabe investigar como é possível haver pensamento tendo em vista a ação constante dessa força de fuga e afastamento: “Em consequência do princípio do desprazer, portanto, o primeiro sistema psi é absolutamente incapaz de trazer algo desagradável para a concatenação de pensamentos. O sistema não pode fazer outra coisa a não ser desejar. Se as coisas permanecessem assim, seria perturbado o trabalho de pensamento do segundo sistema, que precisa dispor de todas as lembranças registradas na experiência. Abrem-se agora dois caminhos: ou o trabalho do segundo sistema se liberta inteiramente do princípio de desprazer e segue seu caminho (fazer conexões que se manifestam como pensamentos) sem se preocupar com o desprazer mnêmico, ou esse trabalho consegue investir de tal maneira a lembrança desprazerosa que a liberação de desprazer seja evitada.”


Devido a força do princípio do desprazer, Freud conclui que deve ocorrer uma inibição da descarga: “...o investimento pelo segundo sistema representa ao mesmo tempo uma inibição para a descarga da excitação (...) o segundo sistema apenas pode investir uma representação quando é capaz de inibir a geração de desprazer que parte dela. O que escapasse dessa inibição também permaneceria inacessível ao segundo sistema, seria abandonado de imediato em consequência do princípio do desprazer. Entretanto, a inibição do desprazer não precisa ser completa; um começo de desprazer precisa ser admitido, pois indica ao segundo sistema a natureza da lembrança e talvez sua falta de aptidão para o fim buscado pelo pensar”.


Neste ponto Freud introduz dois conceitos psicanalíticos importantes: processo primário e processo secundário. “Denominarei agora de processo primário o único processo psíquico admitido pelo primeiro sistema e de processo secundário aquele que resulta da inibição exercida pelo segundo”. O processo primário está interessado na identidade perceptiva que permita a descarga. O processo secundário busca uma identidade de pensamento. “Todo pensar é apenas um rodeio que vai da lembrança de satisfação tomada como representação-meta até o investimento idêntico da mesma lembrança, que deve ser alcançado por via das experiências motoras. O pensar tem de se interessar pelas vias de ligação entre as representações, sem se deixar perturbar pela intensidade delas. Condensações, formações de compromisso e o princípio do desprazer são obstáculos ao seu trabalho. Para isso, a liberação do afeto relacionado com as representações deve ser limitada. Ela deve funcionar apenas como um sinal. Assim ocorre um gasto extra de energia (sobre-investimento). Mesmo assim pode acontecer de pensamentos que se apresentam como resultados do processo secundário caírem em poder do processo psíquico primário. Com essa lógica podemos compreender o significado dos sonhos e os sintomas histéricos, por exemplo.


As coisas são assim por dois motivos, ambos oriundos da nossa história evolutiva: um relativo ao aparelho psíquico e o outro “se impõe de maneira variável e introduz forças impulsoras de origem orgânica na vida psíquica”. Parece que Freud está apontando para um fator filogenético e outro ontogenético, mas logo em seguida ele esclarece que ambos são sedimentos que restaram do desenvolvimento desde a vida infantil. “Os processos primários existem desde o começo, enquanto os secundários se constituem apenas gradativamente no decorrer da vida, inibem e recobrem os primários e talvez alcancem domínio completo sobre eles apenas no apogeu da vida (...) o cerne de nosso ser é constituído de moções de desejo inconsciente permanece inapreensível e não passível de inibição para o pré-consciente, cujo papel é limitado de uma vez por todas a indicar os caminhos mais adequados às moções de desejo provindas do inconsciente. Esses desejos inconscientes representam uma coação para todas as aspirações psíquicas posteriores, à qual tem de se submeter e que talvez possam se empenhar em desviar e dirigir a metas mais elevadas”. 

 

Outras moções de desejo inconsciente que habitam o cerne de nosso ser são aquelas que entraram numa relação de contradição com as representações-meta do pensar secundário. Trata-se de desejo que, se realizados, resultariam em mais desprazer do que prazer. Essa transformação do afeto constitui a essência do recalcamento. Pela força do princípio do desprazer, quando a liberação do afeto vinculado à lembrança não puder ser inibida, a lembrança, bem como os pensamentos aos quais o afeto transferiu sua força de desejo, não pode ser acessada. Esses pensamentos são recalcados desde o início da vida infantil, e se tornam a pré-condição para o recalcamento propriamente dito.
 

Parte F – O inconsciente e a consciência: A realidade

A análise de qualquer sonho vai encontrar sempre o mesmo mecanismo e as mesmas forças determinando o seu sentido. Quando é o próprio corpo que aparece em um sonho, sabemos que essa imagem corporal é produto de fantasias inconscientes impulsionadas por moções sexuais que também atuam na formação dos sintomas histéricos. Quando um sonho parece ser apenas a resolução de algum problema real, revelar uma ideia valiosa para a vida prática ou inspirar uma grande obra de arte, basta retirar-lhe o disfarce para encontrar as mesmas forças psíquicas resultantes do recalcamento.

Pela própria natureza do inconsciente, ele não pode ser observado nem tocado. Só podemos inferir a sua existência indiretamente, pelos seus efeitos. O psiquismo é claramente maior do que o campo estreito da consciência, “mais ou menos como a força gravitacional de uma estrela vai além da sua esfera luminosa.” Tudo aquilo que surge na consciência existiu antes no inconsciente. “O inconsciente é o psíquico propriamente real, tão desconhecido para nós segundo sua natureza interna quanto o real do mundo externo; ele nos é dado pelos dados da consciência de maneira igualmente tão incompleta quanto o mundo externo pelas informações de nossos órgãos sensoriais”.

Todo analista deve ter cuidado para não incorrer no erro de imaginar um aparelho psíquico com dois sistemas próximos à extremidade motora, quando na verdade se trata de dois processos ou modos de fluxo da excitação. O recalcamento, do ponto de vista dinâmico, nada mais é que um investimento de energia colocado em certo arranjo (ou retirado dele), “de modo que a formação psíquica cai sob o domínio de uma instância ou é subtraída dela”; e o retorno do recalcado é equivalente a um processo de tradução. Freud também ressalta que “representações, pensamentos e formações psíquicas em geral absolutamente não podem ser localizados em elementos orgânicos do sistema nervoso, e sim entre eles, por assim dizer, onde resistências e facilitações constituem seu respectivo correlato”. Em uma nota acrescentada em 1925, Freud reconhece que “a característica essencial de uma representação pré-consciente é a ligação com restos de representação de palavra”.

De forma ilustrativa podemos considerar dois tipos de inconscientes: um deles contém material que pode se tornar consciente a qualquer momento (Pcs) e outro que mantém seu conteúdo inacessível à consciência pela força do recalque (Ics). Dessa forma, “o sistema Pcs se encontra como um anteparo entre o sistema Ics e a consciência. O sistema Pcs não bloqueia apenas o acesso à consciência, mas também domina o acesso à motilidade voluntária e dispõe sobre o envio de uma energia móvel de investimento, da qual uma parte nos é familiar sob a forma de atenção”.

 

A consciência é uma faculdade própria de um sistema especial (Cs) que, assim como o sistema perceptivo, “é excitável por qualidades e incapaz de conservar a marca de alterações, isto é, desprovido de memória”. Ela está voltada para a recepção de estímulos externos (advindos do corpo e do mundo lá fora) e internos (fantasias, lembranças, pensamentos, etc.) “cujos processos quantitativos são sentidos como serie de qualidades de prazer e de desprazer depois de passar por certas alterações”.  Em seguida Freud aborda o papel da consciência no fluxo da excitação das quantidades móveis do aparelho psíquico. Assim como a “percepção por meio de nossos órgãos sensoriais tem a consequência de dirigir um investimento de atenção para os caminhos pelos quais se difunde a excitação sensorial que chega; a excitação qualitativa do sistema P serve à quantidade móvel no aparelho psíquico como regulador do fluxo desta. Ao princípio do desprazer, primeira forma de influenciar o curso dos investimentos (deslocamentos de quantidades), o sistema Cs acrescenta “uma segunda e mais fina regulação, que inclusive pode se opor à primeira e que aperfeiçoa a eficiência do aparelho ao colocá-lo em condições, contrariando sua disposição original, de submeter ao investimento e à elaboração também aquilo que estiver ligado à liberação de desprazer. A regulação pelo princípio do desprazer é claramente uma barreia à eficiência do aparelho, pois lhe impede de trazer à luz da consciência qualquer informação que possa, diretamente ou indiretamente (por associação), gerar desprazer. O objetivo da terapia psicanalítica é transpor essa barreia, é apoiar-se nessa nova forma de regulação do aparelho para trazer à tona elementos recalcados para serem elaborados, “anular recalcamentos consumados”, ou, como Freud dirá em outro trabalho, “tornar consciente o que é inconsciente”.

A influência reguladora do sistema Cs sobre a quantidade móvel cria uma nova série de qualidades singulares, como a variedade e qualidade dos pensamentos da nossa espécie. Com um pequeno gasto extra de energia (sobreinvestimento) são refreadas excitações de prazer e desprazer que perturbariam o livre processo do pensar. A qualidade dos pensamentos deriva da sua associação com lembranças de palavra, “cujos restos de qualidades bastam para atrair a atenção da consciência e a partir dela proporcionar ao pensar um novo investimento móvel”. É importante lembrar que “a passagem do pré-consciente ao investimento consciente também está ligada a uma censura, análoga à censura existente entre Ics e Pcs”. Por isso formações de pensamento pouco intensas não se tornam conscientes. “Todos os casos possíveis de afastamento em relação à consciência, bem como de penetração até ela sob restrições, encontram-se reunidos no âmbito dos fenômenos psiconeuróticos.”

Aproximando-se do final do livro, Freud apresenta dois exemplos da presença de material inconscientes na determinação dos sintomas neuróticos. No primeiro exemplo “foi possível reduzir a censura de tal maneira que uma fantasia que de outro modo permaneceria no pré-consciente foi admitida inocentemente na consciência sob a máscara de uma queixa”; no segundo, “lembranças recalcadas há muito tempo e seus derivados que permaneceram no inconsciente se insinuaram na consciência, pelos desvios abertos para eles, sob a forma de imagens aparentemente absurdas”.

Por fim, Freud ainda faz algumas observações sobre o inconsciente e os sonhos. Em primeiro lugar, é inquestionável o estudo dos sonhos para a compreensão da psicologia e para o tratamento das psiconeuroses. Em segundo lugar, não devemos julgar o caráter de alguém pelos seus sonhos. Como afirmou Platão “o virtuoso se contenta em sonhar com aquilo que o malvado realmente faz”. Em terceiro lugar, quem diz que o inconsciente não existe está confundindo a realidade material com a realidade psíquica. Por fim, de certa forma não está totalmente errado acreditar que os sonhos antecipam o futuro, afinal, “ao mostrar um desejo realizado, o sonho de fato nos leva ao futuro; mas esse futuro que o sonhador toma por presente é criado pelo desejo indestrutível à imagem daquele passado”.

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