
Correspondência com Fliess (1892 - 1899)
Os documentos dirigidos a Fliess devem ser lidos tendo em mente a biografia de Freud para que possamos contextualizar suas ideias. Este conteúdo possibilita a compreensão da lógica complexa do pensamento de Freud, mostra como o criador da psicanálise era apaixonado pelas suas pesquisas neste campo, e apresentam as bases empíricas sobre as quais Freud formulou seus conceitos mais fundamentais. Neste primeiro volume de estudos de revisão apresento uma noção do conteúdo presente em 40 das principais correspondências de Freud para Fliess (conforme disponibilizadas pela Edição Standart Brasilera). Bons estudos.
1- Rascunho A (em torno de 1892) – PROBLEMAS
Freud investiga a fonte da angústia dos pacientes neuróticos, as formas que ela se apresenta e os fatores relacionados com o adoecimento (especialmente a sexualidade). Ele estabelece uma equivalência entre inibição sexual e neurose.
2 - Rascunho B (fevereiro de 1893) – A ETIOLOGIA DAS NEUROSES
“Estou escrevendo tudo uma segunda vez para você, meu caro amigo (...) Naturalmente você manterá este rascunho longe de sua jovem esposa.” (...) “pode-se tomar como fato reconhecido que a neurastenia é uma consequência frequente da vida sexual anormal (...) a neurastenia é sempre apenas uma neurose sexual” (...) “toda neurastenia é sexual”.
Freud desfaz a cisão normal X patológico. Segundo ele, as pessoas variam apenas no grau em que conseguem suportar a vida sem adoecer. Ele propõe dois fatores para o adoecimento neurótico: masturbação e coito interrompido.
“um homem sexualmente neurastênico torna a sua mulher não tanto neurastênica, mas histérica”
"A depressão periódica pode ser considerada uma terceira forma de neurose de angústia."
Por fim, tendo em vista a condição civilizada do homem, a tarefa do médico seria apenas profilática.
3 - Carta 14 (outubro de 1893)
“As coisas se complicam cada vez mais (...) Ontem, por exemplo, vi quatro casos novos cuja etiologia (...) só poderia ser o coitus interruptus.”
4 - Rascunho D (1894) – SOBRE A ETIOLOGIA E A TEORIA DAS PRINCIPAIS NEUROSES
Neste rascunho Freud esboça o que seria a estrutura de um livro. As ideias são apresentadas em tópicos que indicam o conteúdo do seu Projeto Para Uma Psicologia Científica.
5 - Carta 18 (maio de 1894)
A respeito das neuroses: “Conheço três mecanismos: transformação do afeto (histeria de conversão), deslocamento do afeto (obsessões), e troca de afeto (neurose de angústia e melancolia). Em todos os casos é a excitação sexual que parece sofrer essas alterações, mas o estímulo para elas não é, em todos os casos, algo sexual”
6 - Rascunho E (1894) – COMO SE ORIGINA A ANGÚSTIA
A angústia tem relação com o coitus interruptus: na mulher devido ao receio de ficar grávida e, no homem, a preocupação de seu artifício preventivo falhar. A angústia não deve ser buscada na esfera psíquica. “... é um fator físico da vida sexual que produz a angústia. Mas que fator?”
Freud conclui que a elevação da tensão sexual é convertida em angústia. “A neurose de angustia é uma neurose de represamento, como a histeria.” Freud apresenta a sua visão da sexualidade como uma tensão endógena que só pode ser aliviada através de ações específicas, caso contrário, torna-se uma perturbação. “...a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em angústia”. Existiria uma proporção entre aumento da angústia e queda de “afetos sexuais na libido psíquica.”
Por fim, Freud percebe uma correspondência entre as vias de inervação da angústia e as vias fisiológicas da sexualidade.
7 - Rascunho F (agosto de 1894) – COLEÇÃO III (DOIS CASOS CLÍNICOS)
Neste rascunho é interessante observar como Freud organiza a exposição do caso:
1) Descrição dos tempos saudáveis até o surgimento dos sintomas.
2) Descrição dos sintomas e períodos de remissão.
3) Contexto e sintomas atuais que motivaram a busca por tratamento.
4) Relato do paciente sobre a sua vida sexual.
Em suas análises destaca-se o foco no fator sexual, na masturbação, no problema do uso de preservativos que diminuem a satisfação, e nos fatores hereditários associados com o adoecimento neurótico.
“É bem possível que o ponto de partida de uma melancolia de menor importância, como a que vimos, possa ser o ato do coito (...) ‘omne animal post coitum triste’”
8 - Carta 21 (agosto de 1894)
Freud compartilha com Fliess dois casos clínicos: um de hipocondria e outro de possível histeria masculina.
9 - Rascunho G (janeiro de 1895) – MELANCOLIA
Com base em um “diagrama esquemático da sexualidade”, Freud argumenta que o afeto correspondente da melancolia é o luto, o desejo de recuperar algo que foi perdido. “...a melancolia consiste em luto por perda da libido”.
Segundo ele, existiriam dois casos de melancolia:
1) aqueles no qual a produção de excitação sexual somática diminui ou cessa (talvez devido à masturbação).
2) aqueles no qual ela é desviada por um grupo sexual psíquico (ela é utilizada “na fronteira entre o somático e o psíquico”, e é o fator determinante da angústia)
“Assim, enquanto os indivíduos potentes adquirem facilmente neuroses de angústia, os impotentes tendem a melancolia”.
Ainda neste rascunho Freud estabelece um paralelo entre melancolia e anorexia (neste caso, a perda do apetite é correlato do não desenvolvimento da sexualidade).
10 - Rascunho H (janeiro de 1895) – PARANOIA
Tanto as ideias delirantes quanto as obsessivas são delírios intelectuais. São formas patológicas de defesa decorrentes de perturbações afetivas. “as pessoas tornam-se paranoicas diante de coisas que não conseguem tolerar”.
Exemplo da mulher que evitava a auto-censura de ser considerada “depravada” através da projeção desta ideia para o exterior, de forma a percebê-la vindo de fora, e assim poder rejeitá-la.
“Portanto, o propósito da paranoia é rechaçar uma ideia que é incompatível com o ego, projetando seu conteúdo no mundo externo”
“...o tema permanece inalterado (crítica, censura, repreensão moral); o que muda é a localização da coisa (o que antes provinha de dentro, agora é recebido pelo ego como advindo do exterior”.
Exemplos:
“O paranoico litigante não consegue tolerar a ideia de que agiu errado ou de que deve repartir sua propriedade. Portanto, pensa que o julgamento não foi legalmente válido, etc.”
> “O alcoólatra jamais admitirá perante si mesmo que se tornou impotente por causa da bebida (...) para ele, é a sua mulher a culpada, tem delírios de ciúme, e assim por diante”
> “O hipocondríaco (...) não admitirá perante si mesmo que seus sintomas têm origem na sua vida sexual; mas causa-lhe a maior satisfação (...) pensar que seu mal é exógeno”
> “O funcionário que foi preterido na promoção convence-se de que deve haver conspiração contra ele e de que devem estar a espioná-lo em sua sala. Não fosse isso, teria de admitir seu fracasso”
“essas pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas”
11 - Carta 22 (março de 1895)
Exemplo de um sonho de realização do desejo de continuar dormindo.
12 – Rascunho I - ENXAQUECA: ASPECTOS ESTABELECIDOS (1895)
É uma questão de soma: “... a enxaqueca é um efeito tóxico produzido pela substância estimulante sexual quando esta não consegue encontrar descarga suficiente”.
13 - Rascunho J (1895) – FRAU P. J. (27 ANOS)
Freud apresenta o caso clínico de uma mulher que passou mal quando estava sentada ao piano. Nesta época, Freud acreditava que fazer uma leve pressão na testa do paciente ajudaria no desbloqueio de lembranças. Este caso mostra como atua uma falsa conexão (substituição) como defesa frente a um desejo sexual. O ataque histérico pode ser concebido como uma forma de ab-reação (descarga).
14 - Rascunho K (janeiro de 1896) – AS NEUROSES DE DEFESA (um conto de fadas natalino)
Histeria, neurose obsessiva e uma certa forma de paranoia "são aberrações patológicas de estados afetivos normais":
>conflito (histeria)
>autocensura (neurose obsessiva)
>mortificação (paranoia)
>luto (amência alucinatória aguda)
Defesas são formas normais de evitar o desprazer decorrente de algum estímulo endógeno, como de lembrança associadas à sexualidade infantil. Se não ocorreu nenhuma estimulação sexual significativa nesta época, então o sujeito está livre da neurose na vida adulta. A vergonha e a moralidade são as forças que determinam o recalque (defesa).
A fórmula padrão do desenvolvimento de uma neurose:
1) recalque da experiencia sexual prematura,
2) surgimento da lembrança da experiência e a formação de um sintoma primário,
3) formação de uma estratégia defensiva,
4) o retorno das ideias recalcadas e a formação de novos sintomas.
Como opera o recalque nas diferentes neuroses?
NEUROSE OBSESSIVA
A lembrança da experiência primária produz desprazer decorrente da autocensura moral. Em seguida, a experiência e a autocensura são recalcadas paralelamente ao surgimento de um sintoma antitético (como a escrupulosidade). “No estágio do retorno do recalcado ocorre que a autocensura (...) emerge simplesmente como um sentimento de culpa sem qualquer conteúdo”. Então este sentimento liga-se à algum conteúdo distorcido. Assim, “uma ideia obsessiva é produto de um compromisso, correto quanto ao afeto e à categoria, mas falso devido ao deslocamento cronológico e à substituição por analogia”.
Sintomas primários: ex. escrupulosidade
· Sintomas de compromisso: ex. ideias / afetos obsessivos
· Sintomas secundários: ex. acumulação de objetos, rituais, etc.
“Parece que os estados de libido insatisfeita contemporânea são o elemento que empresta a força do seu desprazer para reavivar a autocensura recalcada”
“A neurose obsessiva pode ser curada se desfizermos todas as substituições e transformações afetivas ocorridas, de tal modo que a autocensura primária e a experiência a ela pertinente possam ser desnudadas e colocadas diante do ego consciente para serem julgadas de novo”
“A suspeita de que a moralidade é apresentada como força recalcadora (...) é confirmada pela experiência segundo a qual a resistência, durante o trabalho terapêutico, se vale de todos os motivos de defesa possíveis”
PARANOIA
“A experiência primária parece ser de natureza semelhante à da neurose obsessiva. O racalque ocorre depois que a respectiva lembrança causou desprazer (...) Contudo, nenhuma autocensura se forma, nem é posteriormente recalcada; e o desprazer gerado é atribuído a pessoas que, de algum modo, se relacionam com o paciente, segundo a formula da projeção”.
“o elemento determinante da paranoia é o mecanismo da projeção, que envolve a recusa da crença na autocensura”.
HISTERIA
Tem origem em uma experiência primária de desprazer, de natureza passiva, ocorrida não muito precoce. Inicialmente o ego é subjugado pela expressão exagerada da excitação, sem formação de nenhum sintoma psíquico. O recalcamento se dá pela intensificação de uma ideia limítrofe que, depois, representa a lembrança. Esta ideia é resultado de um compromisso porque, por um lado pertence ao ego e, por outro, forma uma parte não-distorcida da lembrança traumática. O compromisso se manifesta num deslocamento da atenção ao longo de uma série de ideias ligadas pela simultaneidade temporal. A manifestação motora é a forma de expressão do evento traumático, é a ideia limítrofe, é o primeiro símbolo do material recalcado. Ela é indício de “uma lacuna na psique”.
15 - Carta 46 (maio de 1896)
“...Como fruto de trabalhosas reflexões, envio-lhe a seguinte solução da etiologia das psiconeuroses (...) pode-se distinguir quatro períodos de vida:”
1º Período:
1.1 - Até os 4 anos (pré-consciente)
1.2 - Até os 8 anos (Infância)
2º Período: Até os 14 anos (pré-puberdade):
3º Período: Maturidade
Obs: Os períodos de transição são os seguintes: dos 8 aos 10 anos, e dos 13 aos 17 anos. Nestes períodos (intervalos) ocorre o recalcamento.
O despertar, numa época posterior, de uma lembrança sexual da época precedente produz um excesso de sexualidade, que inibe o pensamento, confere à lembrança um caráter obsessivo e ativa o recalcamento como estratégia defensiva. A neurose é definida pelo período da vivência sexual e pela natureza da cena. É sempre a cena mais precoce que vai determinar o resultado final. O motivo para a defesa (recalque) no primeiro e segundo períodos é a moralidade e a repulsa à sexualidade.
O período 1.1 é intraduzível, por isso seu conteúdo sexual conduz à conversão somática. É o período correlato da histeria. Assim, a histeria somática pura foi considerada uma neurose “sem defesas”. Para as neuroses obsessivas, as cenas sexuais são traduzíveis em palavras e devem ter ocorrido no período 1.2. Quanto à paranoia, considerada a “neurose de defesa par excellence”, as cenas devem ter ocorrido após a segunda dentição e sido despertadas na fase 3. Seu sintoma característico é a desconfiança.
Para uma lembrança tornar-se consciente ela precisa ligar-se com representações verbais (traduzida em palavras). Assim como os sintomas, as lembranças são produtos de formações de compromisso entre diferentes forças psíquicas. No caso dos sintomas, o resultado é uma manifestação irracional, análogo a um erro de pensamento. “O aumento dos processos não-inibidos, a ponto de eles manterem a posse exclusiva do acesso à consciência verbal, produz a psicose”.
16 - Carta 50 (novembro de 1896)
Relato de um sonho de Freud após o funeral de seu pai. O sonho mostra-se como uma saída para a sua autocensura como sobrevivente.
17 - Carta 52 (dezembro 1896)
Nesta carta Freud literalmente desenha um esquema que nos permite observar o que seria a base sobre a qual ele vai construir a sua metapsicologia. Neste esquema, resumidamente, os estímulos são arranjados e rearranjados pelo psiquismo por diferentes registros psíquicos: à partir da percepção, o primeiro registro efetua a indicação da percepção e estabelece associações por simultaneidade; no segundo registo, denominado de inconsciente, são feitas outras relações (como aquelas de causa-efeito), e assim são armazenadas lembranças conceituais. No terceiro registro, o pré-consciente (o registro do ego) ocorre a ligação destas com as representações verbais.
Com base neste esquema Freud consegue descrever o mecanismo do recalcamento. “... esses registros representam épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre essas épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico. (...) Uma falha na tradução é o que se conhece clinicamente como recalcamento”.
Em seguida, Freud se debruça sobre questão do surgimento de desprazer à partir de uma vivência que fora prazerosa. A resposta encontra-se no desenvolvimento da sexualidade infantil.
“... parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta da perversão por parte do sedutor, e mais e mais me parece que a hereditariedade é a sedução pelo pai”.
“... a histeria não é sexualidade repudiada, mas, antes, perversão repudiada”
Ainda nesta carta Freud já parece ter vislumbrado a existência de zonas erógenas e do polimorfismo sexual infantil.
18 - Carta 55 (janeiro de 1897)
Freud suspeita que a psicose decorre de um abuso sexual antes dos 15 ou 18 meses de vida. Ele também associa o alcoolismo ou a compulsão por jogos como substituições possíveis do impulso sexual.
19 – Carta 56 (janeiro de 1897)
Freud estabelece um paralelo entre a teoria medieval das possessões demoníacas e o mecanismo da histeria. Até mesmo as confissões que eram exigidas das bruxas são semelhantes àquelas que ele exige de seus pacientes.
20 – Carta 57 (janeiro de 1987)
Sobre as bruxas, “O seu voo está explicado, o cabo de vassouras em que montam é provavelmente o grande Senhor Pênis”.
“Outro dia li que o outro que o diabo dá a suas vítimas habitualmente se transforma em fezes (...) o dinheiro simplesmente está sendo reduzido à substancia da qual surgiu”
“Nas perversões (...) podemos ter diante de nós um remanescente de um culto sexual primevo...”.
“Os paranóicos (...) contam histórias semelhantes às das bruxas”.
“Nos histéricos, reconheço o pai por trás de seus elevados padrões referentes ao amor”.
21 – Carta 59 (abril de 1897)
Freud sugere que as fantasias histéricas remontam a coisas ouvidas pelas crianças em tenra idade (até mesmo antes dos 7 meses de vida).
22 – Carta 60 (abril de 1897)
Freud relata a Fliess um sonho no qual ele realiza o desejo, de forma disfarçada, de encontrar-se com ele, de receber um telegrama do amigo, com doses de irritação. O sonho também apresenta-se como produto da necessidade de dar vazão ao seu atual aborrecimento em relação ao pai. Ele também estabelece um vínculo entre o conteúdo do sonho e determinadas cenas do dia anterior. Em sua teoria, o pai ainda exerce um papel ativo nas vivências sexuais infantis dos seus pacientes histéricos.
23 – Carta 61 (maio de 1897) + Anexo (RASCUNHO L e RASCUNHO M)
Fantasias: são derivados de um conteúdo escutado, mas compreendido apenas posteriormente. Elas funcionam como estruturas protetoras, uma forma de tornar os fatos mais sublimes, belos, e uma forma de autoabsolvição. Na histeria, o recalque não atua sobre lembranças, mas sobre impulsos decorrentes da cena primitiva (escutada).
Nos casos de histeria, neurose obsessiva e paranoia, atuam os mesmos elementos: fragmentos de memória + impulsos deles derivados + ficções protetoras. A diferença reside nos diferentes pontos do surgimento das formações de compromisso (sintomas). Na histeria: lembranças. Na neurose obsessiva: impulsos. Na paranoia: ficções protetoras (fantasias).
O rascunho L, em anexo, apresenta exemplos que confirmam sua teoria. O rascunho M aborda temas como:
· o acesso da consciência ao conteúdo recalcado através das fantasias,
· a existência de associações entre as ideias recalcadas,
· o elemento feminino como sendo a essência do recalcado
· o mecanismo da construção de fantasias através de operações de combinação e distorção,
· os três tipos de deslocamento (por associação, por semelhança e causal)
· a diferença entre as fantasias histéricas (independentes e contraditórias) e as paranoides (sistematizadas e harmônicas)
· A diferença entre o recalcamento pré-consciente e o inconsciente.
24 – Carta 64 (maio de 1897)
A carta começa assim “Aqui estão alguns fragmentos lançados à praia na última maré.” Após comunicar as descobertas, ele encerra “... muito em breve descobrirei a origem da moralidade”. O desejo de encontrar um pai que seja o causador da neurose também está presente na determinação do conteúdo do sonho.
25 – RASCUNHO N (maio de 1897)
Indícios de uma teoria sobre o complexo de Édipo. “Os impulsos hostis contra os pais (desejo de que eles morram) também são um elemento integrante das neuroses. Vêm a luz, conscientemente, como ideias obsessivas (...) são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão pelos pais.” Uma face do adoecimento neurótico representa uma forma de autopunição.
· Relação entre impulso e fantasia: parte das lembranças são substituídas por fantasias, parte indicam impulsos.
· Transposição da crença: só há dúvidas e crenças no campo do ego (consciência). Neurose corresponde com o deslocamento da crença (na recusa de sentir amor por A, acredita-se estar apaixonado por B).
· Poesia e loucura: O mecanismo da criação literária é o mesmo das fantasias histéricas.
· Motivos para a construção dos sintomas: A libido é o primeiro motivo para construção de sintomas. “...os sintomas, como os sonhos, são a realização de um desejo”. Essa realização acontece sob as condições impostas pela defesa inconsciente. Sintomas podem ser criados por identificação na fantasia. A libido é transformada em angústia no inconsciente. O simples recalcamento de impulsos não produz necessariamente angústia, mas talvez depressão e melancolia.
· Definição de santidade: são seres que se sacrificam em benefício da comunidade. Renunciam à realizar parte da liberdade sexual e perversas. O próprio incesto é anti-social e da sua renúncia foi condição para a civilização existir.
26 – Carta 66 (julho de 1897)
Devido a ação das defesas inconscientes, memórias falsificadas e fantasias são mais fortes na consciência do que lembranças verdadeiras.
27 – Carta 67 (agosto de 1897)
Freud relata suas dúvidas quanto a sua teoria das neuroses. Ele está de mau humor e considera a análise mais difícil do que qualquer outra coisa.
28 – Carta 69 (setembro de 1897)
Trata-se de uma carta muito citada por diversos psicanalistas por demarcar o rompimento de Freud com a sua teoria da sedução como decorrente de um trauma real para fundamentá-la em bases fantasísticas. “Não acredito mais em minha neurótica”, ele escreveu ao amigo, referindo-se à sua teoria das neuroses. Poucos se lembram desta carta como incluindo a conclusão “... por isso que estava disposto a abandonar duas coisas: a resolução completa de uma neurose e o conhecimento seguro de sua etiologia na infância.”
29 – Carta 70 (outubro de 1897)
Freud comenta que os seus sonhos tem sido essencial para a sua autoanalise. Ele relata ter descoberto que o originador primordial de seus problemas (neurose) não foi seu pai, mas uma mulher feia e velha que lhe deu uma opinião elevada acerca de suas próprias capacidades, bem como o despertar de sua libido (entre dois e dois anos e meio de idade) por ter visto sua bela mãe nua. Ele reconhece ter sentido ciúmes com o nascimento do seu irmão, e autocensuras pela sua morte. Outra lembrança significativa de sua infância é relativa a um sobrinho com quem praticou atos cruéis para com sua sobrinha mais nova. “Esse sobrinho e esse irmão mais novo determinaram o que há de neurótico, mas também o que há de intenso, em todas as minhas amizades”.
30 – Carta 71 (outubro de 1987)
“minha autoanálise é realmente a coisa mais essencial que me ocupa atualmente...” Nesta carta Freud conta episódios de sua infância que se manifestam como formações do inconsciente na atualidade. A importância dos sonhos fica cada vez mais evidente para ele. Ele concebe a paixão pela mãe e o ciúme do pai como algo universal no início da infância, e cita a obra de Sófocles “Oedipus Rex”.
“Cada pessoa da plateia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de um sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual”.
Freud também menciona Hamlet para afirmar sua nova teoria.
31 – Carta 72 (outubro de 1897)
Freud compartilha suas reflexões sobre a resistência, causa da estagnação no tratamento dos seus pacientes. Trata-se de uma ativação do caráter passado da criança, que não se desenvolveu, que foi coberto pelo recalque. O paciente que até então era franco e cordial torna-se grosseiro, mentiroso, obstinado e se finge de doente. A superação desse caráter depende de comunicar isso ao paciente.
Depois que a criança é afastada das experiências sexuais surge uma fase de anseio intenso e ardente, característico da histeria, assim como a anestesia é o seu principal sintoma. Durante o anseio, ocorre a construção de fantasias, a masturbação é praticada e, posteriormente, levanta-se o recalque. “...diversos movimentos obsessivos têm o significado de um substituto dos movimentos de masturbação abandonados”.
32 – Carta 73 (outubro de 1897)
Freud relata o sonho de realização de desejo da sua filha, Ana, de um ano e meio de idade, que falou enquanto dormia “molangos, molangos silvestles, omelete, pudim!”
33 – Carta 75 (novembro de 1897)
Freud aborda o tema do recalcamento. “Dito em modo grosseiro, a lembrança atual cheira mal, assim como um objeto real cheira mal; e assim como afastamos nosso órgão sensorial (cabeça e nariz) com repugnância, também nossa pré-consciencia e nosso sentido consciente se afastam da lembrança. Isso é o recalcamento.”
Freud apresenta, aqui, uma ótima introdução para a compreensão das fases do desenvolvimento da libido e sobre o problema da escolha da neurose (tema de publicações futuras).
34 – Carta 79 (dezembro de 1897)
“...Comecei a compreender que a masturbação é o grande habito, o ‘vício primário’, e que é somente como sucedâneo e substituto dela que outros vícios -álcool, morfina, tabaco etc. – adquirem existência.”
Na neurose obsessiva, o recalcado sobrevém na representação-palavra, e não no conceito (que será, em outro momento, denominado de representação-coisa). Dessa forma uma palavra é capaz de adquirir múltiplos significados. Ele compara o recalque com a censura aplicada sobre uma matéria de jornal. Nesta época inicial do seu pensamento, estas ideias sobre o recalque explicariam os delírios aparentemente sem sentido dos psicóticos.
35 – Carta 84 (março de 1898)
Freud parece ter concluído o seu livro sobre a interpretação, mas ainda está insatisfeito com sua fundamentação (meta)física. Neste contexto ele denomina sua teoria de metapsicologia. Ele resume para Fliess a lógica da realização do desejo como produto de experiências sexuais infantis associadas com restos diurnos.
36 – Carta 97 (setembro de 1898)
Freud relata o caso de um paciente com ênfase na sexualidade infantil e no mecanismo de cisão entre afeto e representação subjacente aos sintomas neuróticos.
37 – Carta 101 (janeiro de 1899)
Freud mostra-se interessado pela sexualidade infantil e na semelhança entre processos mentais associados a formação dos sonhos e aqueles responsáveis pelos sintomas histéricos. Ele afirma que fantasias são produções projetadas no passado através do vínculo verbal.
38 – Carta 102 (janeiro de 1899)
Freud aborda o tema da enxaqueca. “...um ataque de enxaqueca pode ser utilizado para representar um defloramento forçado, embora, ao mesmo tempo, toda a indisposição também representa uma situação de realização de desejo”.
39 – Carta 105 (fevereiro de 1899)
Freud afirma “Realidade X Realização de desejos. É desse par de opostos que brota a nossa vida mental”. Neste sentido, tanto os sonhos quanto os sintomas histéricos são realizações de desejos. Trata-se da realização de desejo de um pensamento recalcado. A diferença entre um sonho um sintoma é que este precisa considerar também a força do desejo do pensamento recalcador, por exemplo, nas autopunições. Trata-se, evidentemente, do surgimento do conceito de formação de compromisso.
40 – Carta 125 (dezembro de 1899)
Trata do problema da escolha da neurose. O autoerotismo, que demanda sensações locais, continua existindo subjacente às futuras fases do desenvolvimento da libido, mas de forma separada. A principal via da histeria é a identificação com alguma figura amada da infância. Na paranoia ocorre um retorno de posição conjugada com uma irrupção de corrente autoerótica.