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Estudos Sobre a Histeria (1893/1895)

Este trabalho de J. Breuer e S. Freud foi publicado em 1895 para provar que “a sexualidade tem papel fundamental na patogênese da histeria, como fonte de traumas psíquicos e como motivo da ‘defesa’, do recalque de ideias da consciência.”

PARTE 1 - SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS

Esta primeira parte do livro foi publicada em 1893 na forma de uma comunicação preliminar.

1.1   
A investigação dos fenômenos histéricos demonstrou que eles possuem sua fonte em traumas psíquicos ocorridos em um passado remoto, geralmente infantil, despertado por algum evento desencadeador atual. Ele corresponde com a presença de afetos intensos e desprazerosos, como pavor, angústia, vergonha, etc. É comum que o evento traumático seja esquecido, e a sua relação com o evento desencadeador e os sintomas manifestos seja irreconhecível. Procurar por analogias e conexões simbólicas entre estes eventos e os sintomas histéricos pode revelar o seu sentido. A cura da histeria depende do acesso à lembrança traumática, da revivescência do seu afeto correspondente e da sua expressão em palavras. Freud ainda acreditava que a única forma de ter sucesso no tratamento destes casos era recorrendo à técnica da hipnose. 


“A lembrança do trauma psíquico age como um corpo estranho ainda muito depois de sua penetração (...) deve ser considerado um agente atuante no presente”. Por isso vale dizer que “o histérico sofre sobretudo de reminiscências”. 

 


1.2     
O tempo não cura as vivências traumáticas. O afeto que ficou sufocado (reprimido) produz efeitos, manifesta-se de forma disfarçada à consciência (sintomas, sonhos, atos, falhos, etc.). Para além de choro ou de atos de vingança, a carga emocional do evento traumático pode ser descarregada através da fala (um sucedâneo da ação) ou do simples processo do pensamento, que pondera à luz da racionalidade e permite a uma correção por outras ideias. 

 


1.3     
Para que um evento produza um trauma psíquico ele precisa ocorrer em um determinado estado de consciência, de forma que sua elaboração produza um afeto desprazeroso e o recalque seja acionado como defesa. Esse estado de consciência fica separado, isolado das associações com outras lembranças e ideias. Ele pode ser chamado de inconsciente. Hipoteticamente, se o recalque for perfeito, as lembranças ficariam completamente inacessíveis (amnésia absoluta). 

 


1.4     
É importante reforçar que o trauma consiste na ausência de ab-reação (descarga do afeto desprazeroso) e/ou de trabalho mental associativo que permite um julgamento crítico adequado. O sintoma histérico manifesto é produto da irrupção da segunda consciência (produzida pelo recalque) na inervação corporal (conversão histérica). Os ataques ocorrem quando algum estímulo atual consegue associar-se com a lembrança recalcada. Geralmente isso acontece pela excitação de uma zona erógena corporal ou uma situação semelhante a ela. 

 


1.5    
Breuer e Freud acreditam ser possível curar definitivamente a histeria. Para isso, basta “anular a efetividade da ideia que originalmente não foi ab-reagida, ao permitir a seu afeto estrangulado o escoamento pela fala, e a leva à correção associativa, impelindo-a para a consciência normal (em hipnose mais leve) ou removendo-a por sugestão médica, como ocorre no sonambulismo com amnésia.”

 

PARTE 2 - CASOS CLÍNICOS

1 - Caso Anna O. 

A paciente é uma mulher de 21 anos, inteligente, talentosa, crítica, obstinada, bondosa, e sem histórico de adoecimento prévio. Em consulta com Breuer, ele constatou uma vida sexual espantosamente empobrecida. Ela jamais tivera um amor, vivia uma rotina monótona, puritana, dedicada às atividades domésticas e passava longos períodos devaneando (chamados de “teatro particular”).

Anna adoeceu em 1880. Seus sintomas incluíam perturbações da visão, alucinações, paralisias, mutismo total, esquecimento do próprio idioma, paresia, parafasia, contraturas, sonambulismo, repugnância a alimentos, tosse intensa, dor de cabeça, alucinações, entre outros.

Ao tomar Anna como paciente, Dr. Breuer concluiu tratar-se de um típico caso de histeria. O seu mutismo, por exemplo, era decorrente de uma situação que lhe causou muita mágoa, mas que ela decidira não falar nada a respeito. Quando Breuer adivinhou (a situação) e lhe forçou a falar, “a inibição, que antes também tornara impossível qualquer outra manifestação, desapareceu.”

Durante o tratamento com Breuer, o pai da paciente morreu. Então novos sintomas apareceram. Breuer interveio com o tratamento hipnótico, durante o qual a paciente relatava todas as alucinações do dia, e, assim, conseguia voltar a sentir-se serena e alegre.

Certo dia, Breuer observou que a paciente costumava murmurar algumas palavras. Então ele decidiu abrir um espaço para escutá-la. Anna transformou o que era murmúrios em frases, e as frases viraram histórias, sempre tristes, mas muito bonitas. Ao terminar de conta-las, Anna recuperava um estado de ânimo tranquilo. Breuer constatou que esta era uma forma de catarse, de descarga emocional que produz alívio afetivo. Assim, toda noite ele “removia-lhe todo o estoque de fantasias acumulado” desde a sua última consulta. Anna inventou a expressão “talking cure” para referir-se a este procedimento de “limpeza pela chaminé”. Segundo Breuer, essa técnica permitia que “cada produto espontâneo da sua fantasia e cada episódio apreendido pela parte doente de sua psique que continuava a atuar como estímulo psíquico” fosse completamente eliminado.

Então aconteceu um fenômeno espantoso. Em um estado de consciência ela vivia no presente, e em outro estado ela vivia como se estivesse no passado, exatamente há um ano atrás. Às vezes bastava um pequeno estímulo para que ela voltasse no tempo e esquecesse as mudanças ocorridas em um ano todo. Breuer precisou, então, trabalhar duplamente: promovendo a descarga de conteúdos do dia atual e também do dia correspondente do ano anterior.

“Cada sintoma desse quadro clínico complicado foi examinado isoladamente (...) retrocedendo até o motivo desencadeador da primeira aparição. Sendo esta relatada, o sintoma era removido para sempre.” Assim foram “eliminadas pela narração” os mais diversos sintomas. Breuer observou que não era útil tentar abreviar o processo evocando diretamente o primeiro motivo precipitador dos sintomas. Era preciso deixar que ele surgisse conforme Anna falava e relembrava sua história. Segundo Breuer, antes de cada sintoma ser resolvido pela fala, seu conteúdo afetivo aparecia uma última vez, com toda intensidade.

Sobre a origem e a incubação da histeria: O fundamento do adoecimento de Anna remonta ao período em que ela cuidava do pai enfermo. Certa noite, enquanto esperava a vinda do médico cirurgião, Anna devaneou com uma cobra vindo picar seu pai. Ela não conseguiu afastar a cobra porque seu braço havia ficado dormente. Seus dedos pareciam cobrinhas, e as unhas pareciam caveiras. O apito do trem lhe acordou. No dia seguinte, a simples visão de um galho lhe provocou a mesma alucinação e distensão no braço. Desde então, estes sintomas tornaram-se mais frequentes. “Estava, pois, criada a inclinação para ausências autohipnóticas”.

Breuer concluiu que duas características psíquicas que atuaram como causas de predisposição para sua subseqüente doença histérica: A) a vida familiar monótona, e B) seus devaneios. O fator A deixa livre um excesso de energia, e o fator B cria um grupo psíquico separado. Qualquer afeto angustiante e súbito acionava a segunda consciência (estado de ausência). O estado secundário mais parecia um sonho, com memória seletiva, alucinações e lacunas entre as associações de ideias. O conteúdo da sua segunda consciência era considerado pela paciente como posse do seu “Eu mau”. Se eles não tivessem sido eliminados sucessivamente, Anna seria uma histérica “maligna, ranzinza, recalcitrante, indolente, desagradável e maldosa; entretanto, após a remoção desse estímulo, seu verdadeiro caráter, que era o oposto de tudo isso, sempre voltava a se manifestar”.

2 - Caso Emmy


     Este caso marcou a história da psicanálise por ser aquele em que pela primeira vez Freud fez uso do método hipnótico. Além disso, Emmy é reconhecida por ter dito à Freud que ele “não devia perguntar sempre de onde vinham isso e aquilo, mas sim deixa-la contar o que ela tinha a lhe dizer”. 


      Ao tornar-se responsável pelo seu tratamento, Freud constatou tratar-se de um caso de histeria. Emmy tinha, na época, em torno de 40 anos. Sobre a sua vida, ela relatou ter sido educada com esmero e opressão por uma mãe severa e dinâmica, ter casado aos 23 anos com um homem bem mais velho que logo faleceu subitamente, deixando-a com duas filhas pequenas.


     O tratamento aconteceu em um sanatório. De início, Emmy queixa-se de uma sensação de frio e dores nas pernas. Além disso, Freud observou:

  • Sinais de agitação,

  • Tiques faciais,

  • Propensão para assustar-se quando a porta é aberta inesperadamente,

  • Produção involuntária de estalos frequentes com a língua

  • Interrupções da fala, com pavor e angústia, dizendo: “Fique quieto – não diga nada – não me toque!” (este comportamento foi tomado por Freud como tentativa de repelir uma alucinação)

 

     O tratamento inicial incluía banhos quentes, massagens e sugestão hipnótica. Após uma semana, a paciente se encontrava consideravelmente melhor.


      Certo dia, a manifestação da interrupção da fala (“fique quieto – não diga nada – não me toque!”) ocorreu enquanto a paciente lhe contava, tomada de pavor, horripilantes histórias sobre animais, lidas recentemente em um jornal. O motivo do seu pavor foi revelado quando, sob hipnose, Emmy revelou lembranças traumáticas da sua infância. Através da sugestão Freud “apaga essas imagens, de modo que Emmy não possa voltar a tê-las diante dos olhos”. 


      No dia seguinte surgem outros sintomas, como dor de estômago, agitação, tensão e tiques. Freud usa o mesmo método visando os mesmos fins (hipnose > descoberta da origem e do sentido dos sintomas > sugestão para livrar-se deles). O tique (estalido com a língua), por exemplo, surgiu pela primeira vez quando Emmy quis ficar completamente quieta para não acordar sua filha mais nova, a qual confessou não amar, e mesmo assim sempre ter feito tudo que poderia por ela. Assim, o seu sentido pode ser reconhecido como a expressão de uma contra-vontade histérica. 
 

     É notável como já nesta época a técnica psicanalítica, ainda em gestação, começa a dar seus primeiros sinais de vida. Seguro da importância do inconsciente na determinação dos sintomas histéricos, Freud permite que Emmy fale livremente, escuta atentamente suas associações, percebe tópicos que se repetem ou que veiculam mais sentimentos, e busca pela origem e sentido dos sintomas. Contudo, ele ainda acredita que é possível driblar as defesas através da hipnose e que as “sugestões” possam ter efeitos curativos. Infelizmente Freud ainda parece pouco atento para a importância da sexualidade e suas formas disfarçadas de manifestação (medos, angustias, símbolos, etc.).
Outros fatos dignos de nota à respeito deste tratamento incluem: 

  • Nos pacientes neuróticos, “a cisão da consciência raramente é pura; na maioria das vezes, fragmentos do complexo ideativo subconsciente penetram na consciência ordinária e são precisamente eles que dão ensejo a tais perturbações (histéricas)”,

  • Quando o paciente “não encontra em sua consciência o verdadeiro motivo da angustia (...) ele não hesita em fazer outra ligação em que ele própria acredita, embora seja falsa”.     

  • Em estado de vigília, Emmy não lembra do que foi falado em hipnose, mas comporta-se como se soubesse.      

  • Afastar-se do problema (defesa) não é resolvê-lo.      

  • Uma descrição incompleta ou inexata da origem / causa dos sintomas não tem eficácia curativa. É geralmente o elemento erótico que tende a ser omitido.      

  • Por coincidência fortuita uma dor orgânica pode tornar-se símbolo somático de um complexo associativo traumático.      

  • Em Viena no século XX havia um ditado popular que dizia “alardear qualquer coisa antecipadamente traz má sorte” (um equivalente ao que temos aqui no Sul: “não se deve gavar o burro antes de atravessar o banhado”). Segundo Freud, não se trata de sorte ou azar, mas da força da ideia contrastante que tende a produzir efeitos (como acontece no caso da contravontade histérica).


      Epícrise:

     Por fim, após o relato do caso, Freud anexa uma epícrise (termo usado em medicina para suplementar um relato, relativo ao período posterior e imediato à crise, bem como uma análise crítica de caso mórbido, após o seu término. Nesta parte do texto Freud aborda a dificuldade de diagnosticar a histeria e apresenta uma teoria que permite a compreensão do processo de adoecimento e cura. “Como é usual na psicoterapia hipnótica, combatia as ideias patológicas presentes por meio de garantias, proibições e introdução de ideias contrárias de toda espécie. Mas não me contentei com isso, investiguei a história da origem dos diferentes sintomas para poder combater os pressupostos sobre os quais haviam sido construídas as ideias mórbidas”. 


      Sua análise fisiopatológica do caso parece contribuir para desvincular o processo de diagnóstico da simples comparação com casos típicos. Neste sentido, ele apresenta a histeria como produto de uma conversão da excitação psíquica em sintomas físicos. A excitação em questão é compreendida como uma quantidade afetiva que foi afastada da consciência por produzir desprazer. As representações correspondentes foram recalcadas, ou seja, tiveram suas associações isoladas do restante do conteúdo mnêmico, tornando-se, assim, inconscientes. Como esse procedimento não ocorre com total eficácia, um resto continua a atuar causando interferências no ânimo do paciente, geralmente na forma de angústia, fobias, inibição da vontade, humor depressivo, etc.


      No caso das fobias, por exemplo, além do elemento fóbico possuir um valor simbólico em relação à vivência traumática, e sua constância depende de um fator atual: a abstinência sexual. Emmy era uma mulher rica, viúva, culta, com um caráter de alto nível, respeitável, comportava-se com a máxima decência e nada indica que ela poderia estar enfrentando uma árdua batalha interna contra o componente sexual recalcado. Através da hipnose foi possível ter acesso a esse conteúdo. 


      Em nota Freud reconhece que a sua cura não foi definitiva. Ele observou que Emmy continuava vulnerável a novos traumas, e como ficou sabendo anos depois, ela estava repetindo com outros médicos a mesma história de tratamento que viveu com ele (apresenta-se em estado lastimável, em seguida melhora visivelmente, depois indispõe-se com o médico e por fim abandona o tratamento). Ele reconhece nisso, em 1924, uma forte compulsão à repetição (conceito ainda não desenvolvido durante o tratamento). 
 

3 - Caso Miss Lucy R. 

     Lucy era uma jovem dama, de 30 anos de idade, que foi encaminhada a Freud por um médico que reconheceu tratar-se de um caso de histeria. Lucy apresentava uma peculiar perda do olfato (analgesia) e mesmo assim queixava-se de um constante cheiro de bolo queimado (ou pudim queimado, em algumas traduções). Ela também estava deprimida, cansada, sentindo a cabeça pesada, falta de apetite e sem vigor. Ela trabalhava de preceptora de duas irmãs pequenas que moravam com o pai, viúvo. 

     Iniciado o tratamento, Freud classificou o cheiro de bolo queimado como alucinação histérica. Segundo ele, o que um dia foi objetivo (o cheiro de bolo queimado) agora é subjetivo (alucinação). Já o seu abatimento do ânimo foi concebido como o afeto correspondente da vivência traumática da qual o cheiro de bolo queimado é símbolo.

     

     Freud, por não conseguir hipnotizar Lucy, procurou outros meios de atingir o mesmo objetivo: promover a catarse afetiva e desvendar as ideias recalcadas. Para isso ele pediu que Lucy deitasse, fechasse os olhos, concentrasse-se, e não deixasse de relatar o que lhe passar pela cabeça, por mais absurdo e vergonhoso que possa parecer (eis aqui um esboço das diretrizes do que virá a ser a técnica psicanalítica). Como Lucy não estava hipnotizada, foi mais difícil encontrar a relação causal sintoma X trauma. Mesmo assim, Freud manteve-se convicto de que em alguma parte da sua memória ela sabia tudo, bastava conseguir acessar. 
 

     Lucy contou-lhe sobre a primeira vez que sentiu o cheiro de torta queimada, quando estava com as crianças e recebeu uma carta de sua mãe. Desde então o cheiro lhe perseguiu, com mais nitidez quando ela sentia-se inquieta. Sobre esta cena, Lucy destacou o contraste afetivo do carinho que recebera das crianças e aflição de abandoná-las para voltar a morar com sua mãe. Ainda mais porque Lucy havia prometido à mãe das crianças, no seu leito de morte, que tomaria o seu lugar nos cuidados com elas. Lucy estava indo embora porque surgiram intrigas com outros funcionários da casa, que passaram a falar mal dela. Após comunicar sua decisão ao patrão, ele pediu que ela ficasse no trabalho por mais uns dias e pensasse melhor a respeito. Foi neste intervalo de tempo que ocorreu a cena do bolo queimado. 
 

     Freud entendeu que “o conflito dos afetos havia elevado o momento à condição de trauma e, como símbolo deste, ficara-lhe a sensação olfativa a ele ligada”. E logo levanta a questão: por que tornar-se histérica? “O que justifica a conversão neste caso? Por que ela não se lembrava constantemente da própria cena, em lugar de lembrar-se da sensação a ela associada, que preferia como símbolo da lembrança?” De acordo com o seu entendimento, a condição indispensável para a aquisição de uma histeria é afastar uma ideia intencionalmente da consciência e da elaboração associativa com outras ideias. Esse mecanismo de defesa, chamado de recalque, também é responsável pela conversão, pois uma vez que as associações ficam bloqueadas sua soma de excitação percorre o caminho errado para uma inervação corporal. O recalque é utilizado sempre que uma ideia tende a produzir desprazer por ser incompatível com a massa de ideias dominantes do Eu. “Mas a ideia reprimida (recalcada) vinga-se, tornando-se patogênica”. 
 

     Freud buscou o elemento determinante para o adoecimento de Lucy seguindo as pistas do seu relato de ternura pelas crianças e suscetibilidade a críticas, e quando encontrou, interpretou “Não acredito que essas sejam todas as razões para seu sentimento em relação às duas crianças; antes presumo que esteja apaixonada por seu patrão, o diretor, talvez sem se dar conta disso você mesma, e que alimente em si a esperança de ocupar efetivamente o lugar da mãe (...)”. De fato, a paciente nutria um amor não correspondido pelo patrão, por isso seu estado de espírito foi perdendo o vigor. Assim foi possível desvendar vários “traumas secundários”, e, aos poucos, o cheiro incômodo de bolo queimado desapareceu. 
 

     Contudo, outro sintoma surgiu: um cheiro semelhante, que parecia fumaça de cigarro. (ps. Freud fumava). O princípio do tratamento deste novo sintoma seguiu a mesma lógica do sintoma anterior, e resultou em benefícios equivalentes. Segundo Freud, “Todo tratamento se estendera por nove semanas. Quatro meses mais tarde, encontrei casualmente a paciente numa de nossas estâncias de verão. Ela estava alegre e confirmou a persistência de seu bem-estar.”
 

Epícrise: 
 

     A histeria é produto da incompatibilidade entre o Eu (moralidade do sujeito) e uma ideia específica. A sua forma depende de fatores como a aptidão genética, a natureza do trauma e a reação a ele. O recalcamento é uma estratégia defensiva que impele a ideia para fora da consciência (evita uma dor psíquica) e canaliza o seu afeto por vias somáticas (conversão – sintomas físicos). O momento traumático é justamente aquele do surgimento da incompatibilidade, da contradição. A ideia recalcada atrai outras ideias associadas, e assim forma-se um grupo psíquico separado. Esse mecanismo não é estático, mas continua atuante, e sempre que alguma impressão do dia-dia evoca, por associação, o conteúdo recalcado, a consciência precisa esforçar-se para não sentir o desprazer da incompatibilidade original, traumática. Nestes momentos surgem os ataques histéricos. A psicoterapia promovida por Freud visa, essencialmente, desfazer a cisão da consciência. 


4.    Caso Katharina 


     Freud, cansado da medicina e do trabalho, foi à montanha Hohe Tauern. Enquanto apreciava a vista, uma moça de 18 anos aproximou-se e lhe pediu para examinasse sua falta de ar. Apesar das circunstâncias, Freud achou que seria proveitoso conhecer o seu caso, e aceitou escutá-la. Eis como aconteceu a conversa / sessão / tratamento: 


     Freud iniciou o exame perguntando à Katharina “Do que você sofre?”. Ela respondeu que tem “muita falta de ar. Não sempre, mas às vezes é tanta que acho que vou sufocar”. 


     Em seu relato, ela “ressaltava indevidamente esse fator, a dificuldade de respiração”, e por isso Freud suspeitou tratar-se de um caso de histeria. Após ouvir mais detalhes de sintomas físicos e emocionais, ele concluiu tratar-se, de fato, de um caso de ataques histéricos episódicos com angústia.


     Além das sensações (físico) e sentimentos (psíquico) Freud investigou possíveis alterações na percepção. Katharina afirmou que sempre vê, durante os ataques, um rosto pavoroso. 

 

     Então, com base na sua experiência em identificar angústia em moças mais jovens “como consequência do pavor que acomete uma mente virgem, quando pela primeira vez se depara com o mundo da sexualidade”, Freud afirmou que ela deve ter visto ou ouvido algo perturbador quando os ataques começaram. Katharina concordou, admirada, e relatou ter visto o seu tio com Franziska, sua prima.


     A partir daí, Freud lhe incentivou a falar mais sobre o fato. Katharina contou detalhes do ocorrido e revelou duas outras histórias mais antigas nas quais ela mesma sofreu investidas sexuais por parte deste tio. Na época ela não entendeu as intenções dele. Ao vê-lo com Franziska “ela estabeleceu prontamente a ligação da nova impressão com essas duas séries de reminiscências, e começou simultaneamente a compreender e se defender. Seguiu-se então um curto período de elaboração, ‘de incubação’, e logo apareceram os sintomas da conversão, o vômito como substituto para a repugnância moral e física. Com isso o enigma estava solucionado.” 

     Freud compartilhou suas conclusões com Katharina, que concordou. “De qualquer maneira, eu lhe fiquei grato por se dispor a conversa muito mais facilmente do que as senhoras pudicas em meu consultório da cidade, para as quais todas as coisas naturais são torpes” 

     

     Por fim, sobre o rosto pavoroso, Katharina se deu conta de ser, de fato, o rosto do tio furioso. Para ele, Katharina era a responsável pela sua esposa optar pela separação. 

     

Epícrise
     

     Trata-se de uma histeria adquirida, assim como a histeria da Lucy, com a particularidade da causa do isolamento da lembrança não ter sido a vontade do Eu, mas a ignorância do Eu (Katharina ainda era muito jovem para compreender experiências sexuais). “As impressões do tempo pré-sexual, que permaneceram sem efeitos sobre a criança, depois adquirem força traumática como lembrança, quando a compreensão da vida sexual se abre para a moça virgem ou a mulher. A cisão de grupos psíquicos é, digamos, um processo normal no desenvolvimento dos adolescentes, e vem a ser compreensível que sua posterior acolhida no Eu dê ocasião, aproveitada com bastante frequência, para perturbações psíquicas”.

5. Caso Elisabeth

     Este caso foi considerado por Freud como o primeiro caso de cura completa de uma histeria. Com ele, Freud descobriu um procedimento que se tornou técnica geral: remover o material patogênico por camadas:

     

     “Primeiramente fazia com que a doente me contasse o que sabia e reparava cuidadosamente onde uma conexão permanecia enigmática, onde parecia faltar um elo na cadeia causal; depois penetrava em camadas mais profundas da lembrança, fazendo agir naquele lugar a investigação hipnótica ou uma técnica similar. O pressuposto de todo o trabalho era naturalmente a expectativa de que uma determinação perfeitamente suficiente se verificasse.”

     

     Foi no outono de 1892 que Elisabeth chegou a Freud. Ela queixava-se de dores nas pernas, dificuldade para andar e cansaço. Ele examinou sua condição e concluiu tratar-se de um caso de histeria adquirida por apoio sobre uma alteração orgânica.

 

     Sobre esse diagnóstico, Freud apresenta alguns aspectos que todo clínico deve prestar atenção: “O neurastênico, ao descrever suas dores, dá a impressão de estar ocupado com um difícil trabalho intelectual (...)”. Ele descreve detalhes exaustivamente e nunca sente que foi completamente compreendido. Além disso, Freud examinou as pernas de Elisabeth e constatou que ao beliscá-las a paciente demonstrava mais sinais de prazer do que de dor. Ela até enrubescia, envergonhada. Freud concluiu tratar-se de uma zona histeriogênica (ou seja [com o perdão de Freud] é como se o clitóris de Elisabeth tivesse se deslocado para a coxa), e procurou ouvir a sua história com o foco nos possíveis pensamentos por traz dessa “dor”. Qual a sua origem e o seu ensejo? Como ela se encaixa na sua história de vida? 
 

     Iniciado o tratamento, ele percebeu tratar-se de uma mulher “inteligente e psiquicamente normal, que carregava o padecimento que minava suas relações e prazeres com semblante alegre, com a ‘belle indifférence’ dos histéricos”. Elisabeth era a mais nova de três filhas. Tinha uma afinidade especial com o pai, para quem ela era “o filho que ele nunca teve”. De personalidade atrevida, teimosa e crítica, Elisabeth era indelicada na sua sinceridade com as pessoas, ambiciosa nos seus sonhos, avessa à ideia casar e assim perder a sua liberdade e autonomia, sentia muito orgulho da sua família e status social, e demonstrava-se muito altruísta para com todos.

     

     Quando cresceu, a família mudou-se para cidade grande, onde desfrutaram de uma vida rica e alegre. Até que um dia seu pai adoeceu subitamente. Elisabeth se encarregou de cuidá-lo com amável resignação. Durante esta época ela sentiu algumas dores nas pernas, mas nada significativo (provavelmente por alguma causa orgânica decorrente dos cuidados prestados ao pai). Apenas dois anos após a morte do pai ela adoeceu e não pode andar por causa das dores. 
 

     Logo após a morte do pai, sua mãe também adoeceu. Restou-lhe dedicar à mãe sobrevivente toda a sua afeição e desvelo. Em seguida, a sua irmã mais velha casou e foi morar em outra cidade. Elisabeth não tinha uma boa relação com esse cunhado. Ela carregava consigo muitas queixas com relação a ele que não foram expressas. Tempos depois, a sua outra irmã também casou, mas com um cunhado bacana, querido e que se tornou amigo de Elisabeth. Ela tornou-se muito apegada ao sobrinho que o casal lhe dera. Assim a família viveu tempos felizes. Certo dia, as três famílias encontraram-se numa estação de veraneio. Foi lá que, depois de um banho quente, as suas dores apareceram com violência. Segundo Elisabeth, a causa era, provavelmente, a longa caminhada que fizera. 
 

     Então Elisabeth tornou-se a doente da família. Por indicação médica, viajou com a mãe para Gastein, tentar um tratamento de banhos. Tiveram que voltar às pressas ao serem avisadas que a sua irmã, que estava prestes a dar à luz a um segundo filho, não estava nada bem. Infelizmente elas não conseguiram chegar a tempo de se despedirem dela em vida. Com a perda da irmã, o cunhado bacana levou as crianças consigo de volta à sua região de origem. “Irritada com seu destino, amargurada com o fracasso de todos os seus pequenos planos de restabelecer o esplendor da casa – as pessoas que amava, mortas, distantes ou afastadas -, sem inclinação a buscar refúgio no amor de um homem desconhecido, ela vivia desde um ano e meio dos cuidados com sua mãe e suas dores, quase apartada de todo contato social” 
 

     Esta primeira camada de informações não esclarecia “por que a afetada teve que adoecer de histeria nem por que a histeria tomara precisamente a forma de dolorosa abasia. Não elucidava a causa nem a determinação da histeria em questão” (pg. 207). Elisabeth não demonstrava sinais de melhora, e não entendia como contar a sua história poderia trazer-lhe algum benefício. Situação comum e muito desconfortável, tanto para o psicólogo quanto para o paciente, de sentir que tudo foi dito e nada mudou. Freud manteve-se convicto de que em algum lugar da mente da Elisabeth estavam as respostas que solucionariam o seu caso. Por isso ele insistiu repetidas vezes que ela deveria apenas falar o que lhe viesse à cabeça, sem críticas morais nem julgamentos de valor. 
     

     Depois de muitos silêncios e a impressão de que nada lhe ocorre, Elisabeth falou que certa vez esteve afim de um rapaz que era muito simpático a todos de sua família. Ela foi incentivada a deixar de cuidar do pai por uma noite para sair com esse rapaz. Infelizmente, justamente nesta noite o estado de saúde do seu pai piorou significativamente. Ao chegar em casa ela recriminou-se por ter priorizado seus interesses afetivos sobre as necessidades do pai. Ela tornou-se tão dedicada ao pai que nunca mais voltou a ver o rapaz. 
     

     Segundo Freud, “o contraste entre a felicidade que ela então se permitira e a miséria do pai (...) produzira um conflito (...) a ideia (ou representação em algumas traduções) erótica foi reprimida (prefiro a tradução recalcada) da associação e o afeto a ela aderido foi utilizado no aumento e reanimação de uma dor corporal simultaneamente (ou pouco antes) presente. Era, pois, o mecanismo de uma conversão com propósito de defesa, ...” (pg. 210)
 

     Além desta descoberta, verificou-se que as que as dores nas pernas e a sensação de frio estavam ligadas às cenas de saltar da cama, no inverno, para atender seu pai. Elisabeth se deu conta que as dores da perna sempre se irradiavam a partir do ponto correspondente ao local que o seu pai apoiava a perna enquanto ela trocava suas faixas. Isso confirmou a hipótese de se tratar de uma zona histeriogênica (ou histerógena). 
 

     A lógica das sessões consistia na elaboração da pergunta > evocação da lembrança + dor > enunciação da lembrança > desaparecimento da dor. Assim, Freud usava a dor como uma bússola para suas investigações. Ele denominou essa etapa de período de ab-reação. Ao observar que não apenas suas perguntas, mas também estímulos do dia-dia eram capazes de evocar a dor, ele cogitou colocar a paciente em situações apropriadas para suscitar lembranças ainda não acessadas (técnica semelhante àquela da TCC que hoje conhecemos por exposição sistemática).
 

     Após investigar detalhadamente as associações da paciente relativas às dores em pé, dores ao andar e dores ao sentar, Freud lança a chocante interpretação “Há muito tempo, então, você estava enamorada de seu cunhado. Nesse instante, ela se queixou de dores atrocíssimas e fez ainda um desesperado esforço para rejeitar a explicação.” Esse foi, ao meu ver, o grand finale do caso (ou o Fatality, para quem gosta de MK).

     

     As intervenções seguintes se deram no sentido de reconciliar a paciente com seu senso crítico sobre si mesma, promover uma aproximação com a mãe e possivelmente uma vida amorosa satisfatória. 
 

Epícrise
 

     Verdade que seus relatos clínicos mais parecem novelas do que artigo científico, mas infelizmente não existe outra forma de compreender uma histeria. Freud reconhece o desgastante trabalho de quem precisa cuidar de um doente, que inclui a repressão das próprias emoções, do desvio da atenção de si mesmo para o doente, da acumulação de impressões traumáticas que não podem ser ab-reagidas (descarregadas). Tudo isso contribui para o surgimento da histeria. 
 

     Por que a dor surgiu justamente na perna? Inicialmente porque foram suas pernas que lhe levaram para longe do pai naquela noite (valor simbólico), havia uma provável dor orgânica quando ocorreu o trauma psíquico (escolha por apoio), tornou-se o lugar que a perna do seu pai tocava para receber cuidados (zona histeriogênica), e também era uma forma de comunicar um sentido (algo do tipo “não consigo mais dar um passo na vida” – o sintoma como uma mensagem). 
 

     Sobre o inconsciente: “... o amor pelo seu cunhado existia em sua consciência à maneira de um corpo estranho, sem entrar em relação com o resto da sua vida ideativa (representacional)."
     

     Sobre a conversão: “as dores histéricas surgiram simultaneamente à formação daquele grupo psíquico separado (...) quando a ligação se efetuou, sentiu uma grande dor psíquica” (e, logicamente, um alívio da dor física). A conversão é, portanto, uma defesa psíquica. O momento traumático é aquele da cisão da consciência (recalque): “naquele momento em que seus deveres como cuidadora entraram em conflito com sua ânsia erótica”. 
 

     Na parte final deste trabalho, para corroborar suas ideias e conclusões, Freud apresenta recortes do tratamento efetuado com a Srta. Mathilde, Srta. Rosalie e Sra. Cacilie.

 

 


PARTE 3 – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS (BREUER)
 

O objetivo desta parte é entrar em mais detalhes sobre o que foi dito na parte 1 (comunicação preliminar). 


1.    Todos os fenômenos histéricos são ideogênicos (causados por ideias)? 


Segundo os autores, são ideogênicos apenas aqueles sintomas provocados por afetos. Sobre o mecanismo psíquico destes fenômenos, eles agrupam os sintomas entre aqueles que seu conteúdo corresponde à ideia incitadora (a ideia de pegar um objeto, por exemplo, é perfeitamente coerente com o movimento de pegá-lo), e aqueles fenômenos que não aparentam ter nenhuma conexão lógica com a sua ideia ocasionadora (como é o caso do rubor produzido pela vergonha, por exemplo). 


2.    A excitação tônica intracerebral – os afetos


O cérebro funciona com uma quantidade de energia variável. Em seus extremos existem dois polos:  A) o sono profundo (sem sonhos), B) a vigília plena. Durante o sono profundo ele acumula força de tensão. À partir de determinado grau ocorre o despertar espontâneo. Tão importante quanto o sono é importante para a acumulação de energia, a vigília é importante para a sua descarga. Um exemplo claro de descarga é a satisfação de necessidades básicas através de ações específicas (comer, respirar, evacuar, etc.). Contudo, “a pulsão sexual é, com certeza, a fonte mais poderosa de acréscimos persistentes de excitação (e, assim sendo, de neuroses). O sistema nervoso excitado (tenso) perturba o curso das ideias (representações).” Esta perturbação explica a conexão lógica do sintoma histérico com sua ideia ocasionadora. É comum que afetos sejam descarregados de outra forma que não através da ação específica que satisfaria a fonte do desejo / necessidade. Esse processo de substituição voluntária é um tipo de transferência que reduz a excitação tônica de forma a proporcionar um alívio parcial (ab-reação). 


3.    A conversão histérica


A conversão é o mecanismo responsável pelo aparecimento dos sintomas. Ela indica que está havendo uma expressão anômala das emoções, ou seja, um desvio no curso da excitação afetiva de uma lembrança traumática. Esse desvio tende a ocorrer pelas vias mais facilitadas, que são justamente aquelas que também estavam ativas no momento traumático, e resultam nas formas de conversão por apoio. O estabelecimento deste desvio é denominado de facilitação. A escolha do desvio para o afeto também pode acontecer como um jogo de palavras, como uma associação simbólica ou analógica. Muitos afetos sexuais não encontram livre expressão por conflitar com o complexo de ideias morais do paciente, e produzem sintomas como abatimento, angústia, vômitos, tosse... Seria normal que essas ideias encontrassem uma descarga através da fala. A comunicação traz alívio, como na confissão católica. Através da fala as ideias podem estabelecer associações, e a ideia recalcada pode ser corrigida pela consciência.  


Existem duas formas conhecidas de defesa: 1) “a supressão voluntaria de ideias penosas, pelas quais o indivíduo se sente ameaçado em sua alegria de viver ou em sua autoestima.”, e 2) ideias impossíveis de serem pensadas porque “originalmente afloraram e foram dotadas de afeto em estados para os quais, na consciência desperta, há amnésia, ou seja, em estados hipnóticos ou semelhantes à hipnose.  
 

4.    Estados hipnoides


A condição para a ação patogênica de uma ideia é, por um lado, uma disposição inata (genética), e por outro lado, um estado de ânimo particular (semelhante ao estado hipnoide). As associações de ideias estabelecidas nesses estados são impossíveis de correção pelo pensamento desperto (sensato, capaz de juízo racional). Nesse estado foram-se relações simbólicas entre o motivo desencadeador e o fenômeno patológico. “Assim, não é a ‘ausência mental’ no trabalho enérgico nem o estado crepuscular desprovido de afeto que são patogênicos, mas sim os devaneios repletos de afeto e o estado de fadiga dos afetos protraídos”. Talvez por isso os dois grandes fatores patogênicos sejam o estado de enamoramento e o cuidado prestado a doentes. 
“Vimos que os mais variados sintomas histéricos, após anos de persistência, ‘desapareciam de imediato e sem retorno, quando conseguíamos despertar com toda clareza a lembrança do acontecimento motivador, assim avivando igualmente o afeto que o acompanha, e quando, em seguida, o doente descrevia o episódio da maneira mais detalhada possível, pondo o afeto em palavras’” (pg. 312)

 

5.    Ideias inconscientes e insuscetíveis de consciência – a cisão da psique 


Ideias conscientes são todas aquelas acessíveis pela atenção, de aspecto nítido. As ideias inconscientes, como não são acessíveis, só temos sinais da sua existência quando, por exemplo “me esqueço de fazer uma visita médica, sinto uma viva inquietação. Sei, por experiencia, o que significa essa sensação: um esquecimento.” Elas estão sempre vivas e ativas, mas abaixo do limiar da consciência. Além dos sintomas, dos esquecimentos e dos sonhos, elas também são responsáveis pelo nosso “estado de espírito” e nossas intuições. 


De modo geral, elas surgem na consciência quando a sua intensidade afetiva aumenta, contudo, nos casos de histeria, sua intensidade afetiva é convertida em sintomas físicos ou perturbações psíquicas, como a angústia, modificações de humor, ansiedade, irritabilidade, etc. Pelo seu potencial de produzir desprazer, essas ideias tornam-se insuscetíveis de consciência. Elas tornam-se parte de um grupo psíquico separado, praticamente sem relações com o restante dos pensamentos. Essa é a principal característica da histeria. “A cisão da consciência não decorre de uma “fraqueza psíquica inata” (janet); eles parecem fracos da mente porque a sua atividade psíquica está dividida, e apenas uma parte de seu potencial se acha disponível para o pensamento consciente”. As ideias inconscientes influenciam o pensamento consciente. Elas produzem efeitos como alucinações, interferem em associações, e assim tornam algumas ideias mais vivas do que seriam naturalmente. Elas governam o estado de espírito do paciente. 
 

6.    Predisposição original; desenvolvimento da histeria


Breuer observa que justamente as pessoas cheias de vida, talentosas e repletas de interesses intelectuais são mais propensas ao adoecimento histérico. “... os histéricos são a flor da humanidade, tão estéreis, mas também tão belos como as flores plenas.” Sua condição parece não tolerar o tédio e a monotonia. Na puberdade soma-se ao excesso da sua excitação psíquica o ingrediente da sexualidade, que, caso entre em conflito com o senso moral da pessoa, a probabilidade de surgir um adoecimento é alta. Breuer observou que o excedente de excitação liberado pelo sistema nervoso de algumas pessoas, quando encontra uma realidade entediante, pode desenvolver enfermidades como a hipocondria ou automutilações como forma de descarga, de ocupação.


Quando o casamento traz mais frustração do que prazer sexual, ele torna-se um fator importante no adoecimento neurótico. A ânsia de amor não satisfeita está entre os principais fatores da histeria. Ela tende a buscar expressão nos devaneios e estados alterados de consciência, acessíveis através da hipnose. Esse outro estado de consciência comporta aquilo que foi considerado demoníaco na era medieval. “É certo que um espírito estranho à consciência desperta do doente e o governa; mas não se trata realmente de um estranho, e sim de uma parte dele

mesmo”. 

PARTE 4 – A PSICOTERAPIA DA HISTERIA (FREUD)

Procurando pela gênese dos sintomas histéricos, Breuer e Freud descobriram a sua cura: lembrar do acontecimento motivador e descrevê-lo detalhadamente, colocando o afeto em palavras. Trata-se de uma forma de ab-reação do afeto e correção associativa da ideia, que passa a ser acessível pela consciência normal (ou removida por sugestão médica).

I  

Freud acredita que o método de tratamento das histéricas apresentado neste trabalho pode ser aplicado às neuroses em geral. Para a cura, mais do que proporcionar a ab-reação do afeto é importante desvendar a origem e o mecanismo do seu recalcamento. Mesmo a constituição histérica sendo permanente, agindo sobre este mecanismo é possível um tratamento que garanta benefícios a longo prazo.

Tudo indica que as neuroses em geral derivam de fatores sexuais. Elas podem ser classificadas em neurastenia (monótona), neurose obsessiva (ideias), neurose de angustia (como é a hipocondria) e a histeria (a mais antiga e conhecida delas). O mais comum é encontrar formas mistas destas neuroses. No caso de Emmy, ela sofria de neurose de angustia, com fobias, decorrentes da abstinência sexual que se combinou com a histeria. O caso de Lucy é o que mais corresponde com uma histeria pura. Katharina parecia sofrer de angustia virginal (uma combinação de neurose de angustia e histeria).

Quando se recebe uma paciente histérica em crise aguda, o melhor a fazer é criar condições para um tratamento. Qualquer tentativa de extirpar os sintomas nesta fase é tão improdutivo quanto é para Sísifo carregar a pedra ao cume da montanha. Apoiar o seu Eu normal pode ajudar na luta contra a segunda consciência. Após a crise é produtivo iniciar o tratamento propriamente dito. Como nem todos os pacientes podem ser hipnotizados, e tendo em vista que os efeitos da hipnose parecem temporários, Freud propõe um outro tipo de intervenção. Trata-se de um trabalho que exige esforço, atenção, toma tempo, e requer um interesse por parte do médico, bem como uma preocupação pessoal pelo doente. O paciente precisa confiar no médico, ter um nível mínimo de inteligência e aceitar o tratamento.

II

A mesma força que determinou o recalcamento de uma ideia impede que o paciente conte o que lhe ocorre quando pensa a respeito da origem ou do sentido dos seus sintomas. O recalcamento opera desfazendo conexões para isolar uma ideia / sentido que seria desprazerosa para o ego (geralmente um sentimento de vergonha, desaprovação prejuízo que ele quer esquecer). Esse conteúdo, a ideia patogênica, está sempre pronta para aparecer, basta que o médico crie condições para isso. Tendo em vista que o Eu consciente só aceita os pensamentos depois de efetuar um tipo de censura, aplicada com base na natureza e na orientação das ideias que ele já possui reunidas em si, cabe ao médico seguir os rastros deixados pelo recalque. A nova técnica, alternativa à hipnose, consiste em colocar o paciente deitado, de olhos fechados, e pedir para que fale a primeira coisa que lhe vier à mente, sem preocupação com lógica, moralidade ou estética. Se mesmo assim nada lhe ocorrer, um último artifício parece contribuir: fazer uma pressão com a mão na testa do paciente e garantir que o pensamento correto vai aparecer. Ao médico cabe escutar com atenção. Algumas ideias aparentemente sem valor podem servir como ponte para a lembrança patogênica.

Freud nos orienta quanto aos subterfúgios dos pacientes para desmerecer alguma ideia ou associação importante. São apenas pretextos para manter o conteúdo patogênico afastado da consciência. Ele faz isso como forma de defesa contra o afeto desprazeroso, e o médico não deve se deixar enganar. Ao reconhecer uma resistência deste tipo, é preciso buscar a sua causa, o seu motivo, o seu fundamento. Contudo, o método de investigação deve progredir no tempo do Eu do paciente. É como descascar uma cebola. “Tanto quanto podemos, agimos como esclarecedores ali onde a ignorância produziu um temor, como mestres, como representantes de uma concepção de mundo mais livre ou refletida, como confessores que, pela persistência de seu interesse e de sua estima, concedem absolvição após a confissão...” (pg. 397)

III

 

Freud questiona o valor da hipnose. Ela parece pouco aplicável, não ser menos trabalhosa do que a técnica da concentração e não ser ter resultados mais efetivos. Em seguida Freud volta a falar sobre a ideia de resistência.

Histeria de defesa: ideia intolerável > recalque (forma de defesa) > ideia recalcada “subsiste como um traço mnemônico fraco e o afeto a ela arrancado é utilizado para uma inervação somática” (conversão).

Histeria hipnoide e de retenção: ideia acolhida em um estado psíquico particular torna-se patogênica, desde sempre fora do Eu. A ideia não encontra resistências no caminho ao Eu com o auxílio da atividade mental sonâmbula. (ex. Anna O).

“É provável que a histeria hipnoide e a de defesa se encontrem em algum lugar na sua raiz, e que a defesa seja o elemento primário. Mas nada sei a esse respeito” Freud já prevê a possibilidade de estender o conceito de defesa a toda histeria.

Dificilmente se encontra um sintoma histérico único. Da mesma forma não se deve esperar apenas uma lembrança traumática, mas sim uma série de traumas parciais e cadeias de pensamentos patogênicos. Assim forma-se uma construção pluridimensional estratificada. Em primeiro lugar há um núcleo de lembranças, vivências ou sequência de pensamentos. Em torno dele forma-se uma grande quantidade de material mnemônico associados logica e cronologicamente. As informações ficam armazenas como em um arquivo ou um dossiê de lembranças e ideias, estratificadas concentricamente em torno de um núcleo patogênico. Conforme a investigação se aproxima dele, aumentam as resistências. Por isso é comum que a investigação prossiga como num trajeto de zigue-zague, por várias linhas ramificadas e convergentes.

O material patogênico do núcleo comporta-se não como um corpo estranho, mas como um material infiltrado. A única forma de modificar alguma coisa é trazendo-a à consciência, portanto, a terapia não consiste em extirpar algo, “mas em dissolver a resistência e, desse modo, abrir à circulação o caminho para uma região até então bloqueada”.

Fica claro que é inútil tentar penetrar diretamente até o núcleo. Para haver uma transformação psíquica é preciso deixar o paciente partir da periferia, relatar o que sabe e o que lembra. Basta apontar caminhos e deixar o paciente prosseguir no seu tempo. É um trabalho colaborativo. Assim o paciente consegue relembrar, descobrir conexões e ab-reagir o afeto. Para saber quais caminhos apontar, não devemos nos desviar do fio lógico da sua fala e associações. Precisamente esse fio é encoberto pelo paciente. Ele tenta fazer um relato completo e congruente. Cabe ao médico perceber os pontos fracos, lacunas, defeitos e informações insatisfatórias. Se duas ideias estranhas parecem conectadas, algum pensamento oculto deve ser responsável pela sua vinculação. Às vezes é preciso abandonar um fio lógico para tomar outro para perseguir. As vezes são vários caminhos secundários que desaguam no principal. Apenas esgotando o material, com a colaboração do paciente, a resistência será vencida. O médico pode ter certeza que nenhuma lembrança surgida é desprovida de importância com relação ao adoecimento. Uma lembrança insistente, um tema recorrente ou uma imagem que não quer se extinguir sugerem que o conteúdo afetivo relacionado ainda precisa ser resolvido. Ao nos aproximarmos do núcleo, a intensidade do sintoma (como a conversão, a imagem ou pensamento obsessivo) aumenta. É como se o sintoma estivesse no lugar de uma ação psíquica. Assim, pode-se concluir que um sintoma nunca aparece sem razão. Assim, inúmeros obstáculos surgem para impedir a ação psíquica de vir à tona. Se não contarmos com o interesse do paciente no seu autoconhecimento é difícil avançar.

O maior desafio é quando a relação do paciente com o médico acha-se perturbada. Talvez o paciente pense estar sendo negligenciado, talvez não confie no médico e no seu potencial, ou tenha medo de tornar-se dependente dele. Talvez, ainda, o paciente possa estar transferindo, por falsa conexão, para o médico, as ideias penosas que emergem da análise.

Por fim, Freud apresenta a sua célebre resposta à paciente que lhe perguntou de que adianta tratar-se quando simplesmente suas circunstâncias de vida são favoráveis ao adoecimento: “De fato, não duvido que seria mais fácil para o destino do que para mim eliminar seu sofrimento: mas você se convencerá de que muito se ganha se conseguimos transformar sua miséria histérica em infelicidade comum. Desta última você poderá se defender melhor com uma vida psíquica restabelecida”.

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