
Projeto para uma psicologia científica (1895)
“A ‘psicologia’ representa, positivamente, uma cruz para mim. Seja como for, jogar boliche e colher cogumelos são atividades muito mais saudáveis. Afinal, eu queria apenas explicar a defesa, mas, quando dei por mim, estava tentando explicar algo que pertence ao próprio núcleo da natureza. Tive de elaborar os problemas da qualidade, do sono, da memória – em suma, a psicologia inteira. Agora não quero mais ouvir falar nisso”.
Freud, 16 de agosto de 1895.
O estudo do Projeto Para Uma Psicologia Científica me fez viver a empolgação, expectativa, stress e raiva que muito provavelmente Freud sentiu ao escrevê-lo. Vários fatores contribuíram para que este manuscrito não fosse destruído nem pelos nazistas nem pelo próprio Freud, e caísse nas mãos da princesa Marie Bonaparte, que conseguiu publicá-lo em 1950 (onze anos após a morte de Freud).
Segundo o tradutor da primeira versão do texto em português, James Strachey, o Projeto contém “o núcleo de grande parte das teorias psicológicas que Freud desenvolveria mais tarde. (...) ele esclarece, pela primeira vez, algumas hipóteses fundamentais mais obscuras de Freud.”, e acrescenta que “O espírito invisível do Projeto paira sobre toda a série de obras técnicas de Freud até o fim.” Além disso, longe de ser ultrapassado, o brilho de ideias do seu autor vem aumentando com a confirmação científica das suas hipóteses sobre o funcionamento mental.
Assim como o texto original, este resumo está dividido em três partes: 1) Esquema geral, 2) Psicopatologia e 3) Tentativa de representar os processos psíquicos normais.
1- ESQUEMA GERAL
“a intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural (...)”
1.1 – A concepção quantitativa
Hipótese fundamental: o sistema nervoso tende a livrar-se de Q (quantidade de energia). Assim, ele opera segundo o “princípio da inércia” (também chamado de “princípio da constância”). Para dar conta dos estímulos internos (necessidades biológicas como a fome, sexualidade, respiração, etc) e dos estímulos externos (calor, sons, choques mecânicos, odores, etc.), o sistema nervoso desenvolveu dois grupos de neurônios:
A) neurônios sensoriais (responsáveis pela recepção de Q),
B) neurônios motores (responsáveis pela sua descarga motora).
1.2 – Segundo teorema principal
Freud conclui que alguns neurônios devem possuir barreiras de contato que possibilitam o armazenamento de Q.
1.3 – As barreiras de contato
Os neurônios podem ser classificados em dois grupos:
A) Neurônios phi:
Possuem barreiras de contato (sinapses?) permeáveis, por isso estão sempre livres para a recepção da Q externa.
B) Neurônios psi:
Possuem barreiras de contato pouco permeáveis e ficam permanentemente alterados pela passagem da Q. Este grupo é responsável pela memória. A circulação da Q dentro deste sistema depende do grau de facilitação das suas barreiras de contato, o qual, por sua vez, é resultado da magnitude e da frequência das impressões recebidas. Como o sistema nervoso precisa acumular um nível mínimo de Q para efetuar ações específicas (ou seja, aquelas ações correspondentes com a redução da Q endógena, das quais não se pode fugir) um grupo de neurônios psi estabeleceu facilitações entre si.
1.4 – O ponto de vista biológico
A diferença entre as duas classes de neurônios (phi e psi) reside nas quantidades da Q com que têm de lidar. A classe psi recebe estímulos advindos tanto de phi como do interior do corpo (endógenas)
1.5 – O problema da Quantidade
Em decorrência da magnitude dos estímulos externos, é preciso haver “telas de Q”. São estruturas terminais que recebem o estímulo e reduzem a sua magnitude ao ponto de ser suportável pelo sistema phi. Das terminações nervosas ao centro do sistema nervoso parece aumentar a força do princípio da constância.
1.6 – A dor
É a manifestação psíquica da transposição do limite de Q suportável pelo sistema nervoso. É produto de uma falha no funcionamento de recepção-descarga. Assim, a dor consiste na irrupção de grandes quantidades de Q em psi. “toda a excitação sensorial (...) tende a se transformar em dor à medida que o estímulo aumenta”. Ela “deixa facilitações permanentes atrás de si em psi”.
1.7 – O problema da qualidade
Os estímulos que somos capazes de perceber na consciência são dotados de qualidades específicas, determinadas por um terceiro sistema (w). Este sistema trabalha com quantidades de Q ainda menores, e é, ao mesmo tempo, altamente permeável ao fluxo de Q. A sua permeabilidade não é decorrente da magnitude do estímulo, mas da sua natureza temporal, ou seja, do seu período. Assim, o sistema w funciona como um órgão de percepção, é excitado junto com a chegada de estímulo externos, e produz as diversas qualidades perceptíveis.
1.8 – A consciência
A consciência é representada pelo sistema w, que também funciona de acordo com o princípio da constância, e registra o acúmulo e a descarga da Q existente em psi como desprazer e prazer, respectivamente.
1.9 – O funcionamento do Aparelho
Sobre os estímulos externos que chegam em phi, eles são reduzidos (quantitativamente) e limitados (qualitativamente) pelos sentidos, que, para isso, atuam como telas e peneiras. À partir da sua recepção, o estímulo inerva-se por vias de condução que se ramificam continuamente, diluindo a sua intensidade, até desembocar em diferentes terminais psi. “A quantidade de excitação em phi se expressa em psi por enredamento”.
O sistema psi pode ser dividido em dois grupos: pallium, catexizados a partir de phi; e os nucleares, catexizados a partir das vias endógenas de condução (do interior do corpo).
1.10 – As vias de condução de psi
Freud concebe o sistema psi como exposto sem proteção aos estímulos contínuos do interior do corpo. Através de um processo de soma (acumulação de Q nas vias de condução de psi) efeitos psíquicos são percebidos pela consciência. Logo, psi está à mercê de Q, “e é assim que surge no interior do sistema o impulso que sustenta toda a atividade psíquica. Conhecemos essa força como vontade – o derivado das pulsões”.
1.11 – A experiência de satisfação
Acumulação de Q em psi corresponde com a sua propensão à descarga motora. Como pode-se observar nos bebês, por exemplo, essa acumulação produz movimentos como gritos e choro. Apesar destas ações não produzirem diretamente uma descarga satisfatória da Q acumulada, elas funcionam como mensagem para alguém, um cuidador (geralmente a mãe), que lhe proporciona a satisfação através de uma ação específica. Esta ação pode ser, por exemplo, dar-lhe de mamar.
Assim, quando a ação específica é bem sucedida, o resultado psíquico da experiência é a descarga da Q acumulada (experiência de satisfação). Com isso, forma-se uma facilitação entre os neurônios responsáveis pela percepção do objeto e os neurônios relacionados com os movimentos específicos durante a descarga.
Freud observa que a Q acumulada tende não apenas para o caminho neural mais facilitado (barreiras de contato com menor resistência) mas também para as vias catexizadas (ativas). Assim, é provável que o primeiro movimento psíquico decorrente da acumulação de Q em psi (ou seja, de um desejo) é a ativação das imagens mnêmicas relacionadas com a lembrança da experiência de satisfação.
1.12 – A experiencia da dor
A dor é produto de um excesso de Q externa nas telas do sistema phi, logo, de uma sobrecarga correlativa no sistema psi. O sistema w traduz essa sobrecarga em desprazer. A partir desta experiência, o sistema nervoso efetua uma facilitação entre a propensão à descarga da Q (conforme o princípio da constância) e a imagem do objeto-estímulo que a produziu. Assim, sempre que esta imagem for catexizada (ativada, reproduzida na lembrança), as vias correlativas à experiência dolorosa também serão, e a Q em psi ficará elevada, gerando desprazer como afeto.
Freud questiona-se quanto a origem da Q responsável por este desprazer, pois, afinal, não houve entrada de Q externa no sistema nervoso. Como resposta, ele formula o conceito de neurônios-chave, que, diferentemente dos neurônios motores (de condução de Q), secretam substâncias que atuam como estímulo (Q) nas vias endógenas de condução.
1.13 – Afetos e estados de desejo
Os resíduos destas experiências (de satisfação e de dor) são os afetos (aumento súbito de Q) e os estados de desejo (aumento de Q por soma) por soma. Nos casos de experiências de satisfação, a tensão Q é convertida em atração pela imagem mnêmica do objeto; e nos casos dor, em repúdio (recalcamento). Assim, as duas experiências produzem caminhos diferentes de facilitações entre psi núcleo e psi pallium.
1.14 – Introdução do “Ego”
O ego é um grupo de neurônios constantemente catexizados (ativos) que interferem nas passagens de Q por catexia colateral. Ele avalia a possibilidade de uma descarga de Q pelas vias mais facilitadas resultar em experiências de dor. Assim, o curso da Q no sistema é determinado tanto pelas vias mais facilitadas (menor resistência nas barreiras de contato) quanto pelas catexias colaterais ativadas pelo ego. A defesa primária, denominada de recalcamento, corresponde com a ativação de catexias colaterais que impedem a ativação de neurônios-chave (secretores de substâncias relacionadas com o desprazer) pelo fluxo de Q eliciado frente algum estímulo.
1.15 – Os processos Primário e Secundário em psi.
O ego pode sofrer danos em duas situações:
1) Quando o estado de desejo catexiza uma imagem de forma tão intensa que o ego percebe-a como real e aciona o processo de descarga, logicamente sem obter a satisfação esperada.
2) Quando as catexias colaterais não conseguem inibir à tempo a liberação de desprazer decorrente da catexia de uma imagem mnêmica hostil.
Em ambos os casos, o ego precisa ser capaz de diferenciar realidade e representação. O critério para esta diferenciação é a Q em w. “... a informação da descarga proveniente de w constitui a indicação da qualidade ou da realidade para psi”. O ego é capaz de inibir a catexia do desejo (ou seja, de acumular Q) de forma a impedir a descarga do sistema w. “A inibição pelo ego que possibilita um critério de diferenciação entre a percepção e a lembrança”.
O processo secundário é aquele que sofreu a ação do ego. São versões atenuadas dos processos primários (Q não inibida, que segue simplesmente as vias mais facilitadas). Para o ego agir é fundamental obter indicações da realidade.
Resumidamente: Nos estados de desejo e de desprazer o sistema psi fica com acúmulo de Q, se há indicação de realidade (por parte de w), ele pode iniciar a descarga (ação específica) ou efetuar uma defesa por catexia colateral (recalcamento).
1.16 – Cognição e Pensamento Reprodutivo
O pensamento reprodutivo busca conduzir a Q endógena no sentido da identidade (correspondência) entre a imagem buscada (desejada) e a percebida (real) visando a descarga (ação específica). Possibilidades de correspondência entre a imagem mnêmica catexizada do objeto (desejo) e a percepção do objeto na realidade (indicada por w):
1º coincidência total = a descarga é eficaz.
2º coincidência parcial = não é seguro iniciar uma descarga. É preciso, primeiro, comparar (julgar, analisar) os dois complexos (do objeto desejado e do objeto percebido). A comparação acontece por decomposição dos componentes para avaliar o que é igual e o que é diferente. O que é igual, constante, é denominado de a coisa; e o que é diferente, mutável, é denominado de predicado (atividade ou atributo). Quando os dois complexos não coincidem, ocorre o pensamento. Ele consiste na atividade do ego de seguir as conexões a partir dos elementos diferentes do objeto percebido até encontrar uma correspondência que permita a descarga. Às vezes é preciso acionar uma imagem motora para isso, como faz uma criança em busca da posição ideal em relação ao seio para mamar. Todo esse processo acontece com a Q acumulada pela inibição determinada pelo ego mediante deslocamento experimental pelas catexias colaterais. Durante esse processo, o elemento desejado e não encontrado na percepção está catexizado o tempo todo. Quando o pensamento (fluxo de Q inibida orientada experimentalmente pelo ego por catexias colaterais) esbarra em uma lembrança desprazerosa, a Q desvia-se como forma de defesa.
1.17 – Memória e Juízo
3º ausência de correspondência: surge o desejo de conhecer o objeto percebido. Ocorre uma hipercatexia na imagem percebida. São as diferenças que suscitam a atividade do pensamento. Em outras palavras, a coincidência entre o percebido e o lembrado não é estimulante para o ego. A atividade do pensamento pode, diante da percepção de uma imagem nova, diferente, voltar-se para a percepção de forma judicativa ou para as lembranças despertadas (atividade mnêmica).
O pensamento pode acontecer de forma pura, segundo a mesma lógica mas sem visar nenhuma ação específica. A dissecação de um complexo perceptivo (como a imagem de outra pessoa) é o que podemos chamar de conhecer.
1.18 – Pensamento e realidade
O pensamento tem o objetivo de conhecer a identidade da percepção: 1) Estabelecendo relações com catexias corporais (pensamento cognitivo ou judicativo), ou 2) Estabelecendo relações com catexias psíquicas (pensamento reprodutivo, relativo às experiências do próprio sujeito no passado). Assim é gerado um juízo de realidade, uma crença. Neste processo é fundamental uma certa bagagem de experiências corporais, sensações e imagens motoras de si mesmo. Por isso nenhuma experiência sexual produz efeitos antes da puberdade.
Julgar (produto das diferenças, das coincidências parciais) e lembrar são processos que demandam diferentes quantidades de catexias do ego. As associações livres, determinadas apenas pelas vias mais facilitadas (processo primário), pode despertar a imagem mnêmica de uma experiência de dor, com o seu desprazer correspondente e o movimento defensivo adequado (associações colaterais ou descarga). Através do juízo (processo secundário), é possível conhecer o objeto e determinar a transmissão e a descarga das Qs advindas de phi. “o processo secundário é uma repetição da passagem original em psi, num nível mais baixo e com quantidade menores”. Ele corresponde ao pensamento, e consiste “na catexia dos neurônios psi acompanhada por uma mudança promovida pela catexia colateral do ego naquilo que é imposto pelas facilitações”. O processo de pensamento deixa atrás de si traços duradouros.
1.19 – Processos primários – O sono e os Sonhos
A origem das quantidades dos processos primários em psi:
1) O mundo externo no caso da experiência de dor
2) Endógena, liberada por facilitação, no caso de um afeto
3) Transferida do ego como interesse do pensamento, no caso do processo secundário.
Os processos psi se correspondem ao sonhar, ao conteúdo da consciência durante o sono. Eles demonstram ser equivalentes aos mecanismos patológicos das neuroses. A condição para o sono é uma queda da carga endógena no núcleo de psi, que torna supérflua a função secundária. A reserva de Q acumulada no ego é descarregada. Ele desfaz catexias que são reestabelecidas quando acordamos. Durante o sono há paralisia motora (paralisia da vontade, pois a vontade é a descarga de Q de psi). Os órgãos sensoriais ficam anestesiados. Não há percepções, pois a vigília requer uma catexia constante (atenção) nos neurônios psi pallium (que recebem Qs de phi). Enquanto o sistema psi está catexizado, ele exclui as impressões de phi.
1.20 – A Análise dos sonhos
Várias considerações:
1) Paralisia motora – devido “a falta de pré-catexia espinhal graças a cessação da descarga em phi. A excitação motora não consegue transpor as barreiras de contato.
2) Conexões absurdas – devido ao predomínio da compulsão por associar. O esquecimento é produto da baixa catexia do ego, que permite a Q seguir os caminhos das facilitações mais próximas, vizinhas.
3) Caráter alucinatório – Ocorre porque as catexias oníricas regridem. Ou seja, a suspensão da descarga motora vinda de psi produz uma descarga retroativa em phi, que é percebida por w como qualidade. A vivacidade da alucinação é diretamente proporcional à importância da ideia (o interesse, a catexia de psi).
4) São realizações de desejos – São processos primários que acompanham a satisfação. A liberação de prazer é pequena porque a catexia de desejo primária também foi de caráter alucinatório.
5) Tendência ao esquecimento – Esquecemos porque o fluxo da Q se dá por velhas vias já facilitadas, sem provocar mudança, sem vestígio de descarga
6) Apresentam a mesma qualidade que na vida desperta – Isso demonstra que a consciência não está delimitada pelo ego. Processos primários não correspondem com processos inconscientes.
1.21 – A consciência do sonho
Freud aborda o caráter descontínuo da lembrança dos sonhos. Ele cita, como exemplo, o sonho da injeção de Irma, que será abordado com mais detalhes na Interpretação dos Sonhos. Por ora, o essencial fica aparente: trata-se do efeito de um desvio produzido por catexia simultânea. Uma representação toma o lugar de outra. O vínculo intermediário entre a ideia que se tornou consciente e aquela que representaria a realização do desejo (inconsciente) fica por ser inferido. A consciência, assim, apresenta-se como produto de uma passagem de Q, ou seja, não é despertada por uma catexia constante, estática.
2 – PSICOPATOLOGIA
2.1 – A psicopatologia da Histeria
“... os pacientes histéricos estão sujeitos a uma compulsão exercida por ideias excessivamente intensas”. A intensidade da ideia é caracterizada pela sua frequente ocorrência (intrusivas) ou pela estranheza das consequências que provoca, pelo seu caráter extravagante e incongruente. Assim, por exemplo, uma determinada ideia pode despertar afetos estranhos, aparentemente sem relação com ela. Em análise, descobre-se que outra ideia é a correspondente lógica deste afeto estranho. Verifica-se, então, que essa outra ideia possui relação com aquela, consciente. É como se uma ideia tomasse o lugar da outra, como substituta, como um símbolo. Uma ideia tornou-se compulsiva na consciência, e a outra ficou recalcada (inconsciente). O recalcamento é o esvaziamento da Q de uma determinada ideia (grupo de neurônios). Essa Q passa a catexizar outro grupo de neurônios, correspondentes com uma outra ideia. Esse é o mecanismo do processo primário.
2.2 – A gênese da Compulsão Histérica
São recalcadas apenas ideias associadas com a vida sexual e que tem o poder de produzir desprazer. É uma defesa primária que consiste na inversão da corrente de pensamento. A força de recalque de uma ideia corresponde com a compulsão de outra na consciência. A ideia recalcada não é completamente esquecida, simplesmente seu afeto é deslocado, transformado.
2.3 – A defesa patológica
O que caracteriza a defesa patológica em relação à defesa normal é a estabilidade das suas formações simbólicas. Na neurose obsessiva ocorre recalcamento sem formação de símbolos.
2.4 – A Proton Pseudos [Primeira Mentira] Histérica
Existe uma correspondência funcional entre o processo primário da formação simbólica (movimento da Q) na compulsão histérica e nos sonhos normais. Trata-se de um processo defensivo por parte do ego. Freud fundamenta a importância da sexualidade com o caso da Emma, a garota que não conseguia entrar em lojas sozinha. À partir do sintoma, ele busca por cenas que possam esclarecer a sua gênese e seus mecanismos. Neste exemplo são abordados temas como o estabelecimento de vínculos associativos, a conversão da sexualidade em angústia, o mecanismo das falsas conexões, o recalcamento e o retorno do recalcado. “constatamos que só se recalcam lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada”.
2.5 – Determinantes da Proton Pseudos
No caso das ideias sexuais, é comum uma lembrança despertar um afeto que não existiu por ocasião da experiência. Para isso a puberdade exerce um papel fundamental. Ela permite que o que há de perturbador em trauma sexual libere o afeto. “todo adolescente, portanto, traz dentro de si o germe da histeria”
2.6 – Perturbação do Pensamento pelo Afeto
Está claro para Freud que a liberação sexual prematura ligada a uma lembrança (e não a uma experiência) é responsável pela perturbação do processo psíquico. O curso normal do pensamento é inibido por afetos. Vias de pensamento são esquecidas. A angústia tende às vias mais facilitadas, com tendência à descarga. O pensamento perde em lógica e eficiência. Tendência à impulsividade.
A Q de uma experiência de dor tende a intensificar catexia da imagem do objeto correspondente, no sentido da descarga por vias pré-facilitadas. A atenção do ego catexizado para as novas percepções desenvolveu-se para evitar novas experiencias de dor. O desprazer da catexia funciona como sinal de defesa para o ego. Chamamos de reflexão o processo de deslocamento experimental de pequenas Q´s por parte do ego. Quanto maior o desprazer (altas quantidades de Q), mais trabalho o ego precisa realizar para acionar catexias colaterais, e mais difícil se torna o processo de pensar. Através da atenção o ego não permite a liberação de afeto. As vezes ele não consegue porque a lembrança que libera desprazer ocorre inesperadamente.
Quando o ego já existe, já tem “maturidade”, ele consegue estabelecer (quase) simultaneamente com a experiência da dor catexias colaterais, impedindo o desenvolvimento de desprazer. Quando a catexia se repete, as facilitações (via catexia colateral) do ego já estabelecidas diminuem a liberação de desprazer. Depois de várias repetições, elas se tornam apenas um sinal aceitável para o ego.
3 – TENTATIVA DE REPRESENTAR OS PROCESSOS PSÍQUICOS NORMAIS
Acredito que esta ultima parte, além de difícil compreensão, não apresenta elementos inéditos que justifiquem uma elaboração minuciosa. Tendo em vista o objetivo de uma revisão breve dos principais textos da psicanálise, este tópico ficará reduzido àquilo que considero mais importante e que consegui compreender com segurança.
3.1
A indicação de qualidade (descarga de w) induzida pela percepção também orienta o ego no investimento da atenção. Uma descarga semelhante (w) é proporcionada pelo ato de falar. Além da sua importância para a comunicação, falar também é uma válvula de escape para a Q acumulada. As indicações de qualidade (w) produzida pela fala equipara os processos de pensamento com os perceptivos, conferindo-lhes realidade e possibilitando a sua lembrança. A memória consiste em facilitações específicas entre neurônios psi. Ela representa toda influência histórica do mundo externo. As catexias do ego efetuada nos neurônios psi também produz facilitações (traços), mas sem a descarga associada de w (restrita às percepções e a atividade da fala).
A pré-catexia das imagens verbais que emergem durante a passagem da Q é a essência do pensamento observador. O processo segue a sequência: imagens mnêmicas > imagens sonoras > imagens verbais > informação de descarga > indicação de qualidade. O pensamento observador é investigador, questiona significados, busca relações de causa e efeito, estabelece associações de catexias mnêmicas e assim tenta se familiarizar ao máximo com o conteúdo percebido. O pensamento é sempre acompanhado de um leve dispêndio motor. Ele é um processo hipercatexizado em comparação com o processo associativo simples e a percepção. Apesar da catexia forte, seu deslocamento é fraco (como é todo deslocamento colateral determinado pelo ego).
O ego é um grupo complexo de neurônios que se mantêm presos às suas catexias. Ele estabelece a ligação entre o estado de desejo, a experiência de satisfação, o objeto amado e a ação específica. Esse processo de aprendizagem é chamado de educação. Assim o ego aprende a não elevar a Q (desejo) acima de determinado limite (alucinação que produz frustração da descarga) e a não iniciar a descarga enquanto não se cumprirem determinadas condições advindas da percepção (inibição da Q > comparação > identidade > descarga). O ego tem seus limites impostos A) pelas barreiras contra a motilidade (que impede a descarga) e o desejo; B) pelas resistências dos neurônios mais distantes; C) pela pressão constante das vias de condução. Ele também é variável em tamanho, de acordo com a Q acumulada no sistema. Toda a sua razão de ser é evitar o desprazer (defesa primária). “Quando aparece uma indicação da realidade, aí então a catexia perceptiva que existe simultaneamente deve ser hipercatexizada.”
3.2
O pensamento observador não interfere na passagem da Q. Ele apenas segue o fluxo das percepções sem a interferência das catexias de desejo. O fluxo da Q do pensamento produz pequenas descargas verbais (fala) que funcionam como indicação de qualidade que mantém a atenção, favorecendo a rememoração. As catexias intencionais do ego podem influenciar a passagem da Q e produzir um falso conhecimento das percepções. Existe uma região do ego que não aceita desvios e percebe o surgimento de falsos conhecimentos. Essa região está em contato com as indicações da realidade do pensamento e da fala. As catexias intencionais (afetivas) concorrem com as indicações da realidade tornando inconsciente algumas passagens associativas do pensamento.
3.3
Outro tipo de pensamento foi denominado de pensamento prático. Ele tem origem no estado de expectativa. Neste caso, ocorre uma catexia simultânea da percepção e da catexia do desejo. O pensamento prático requer uma força necessária para conduzir a Q por vias pouco facilitadas, e, quando obtém sucesso, conseguem antecipar a realidade, logo, evitar o dispêndio desnecessário de energia.
Tambem é possível ocorrer um tipo de pensamento em sentido contrário ao pensamento prático, mas profundamente vinculado à ele, denominado de pensamento rememorativo (reprodutivo). Nele, a atenção retrocede para as marcas do que foi um dia percebido.
Quando algum pensamento produz desprazer, as percepções relativas são transformados em imagens que são associadas por catexia colateral de forma a reduzir a Q do sistema. O afeto de desprazer tende a produzir uma descarga motora que corresponde com a interrupção do pensamento (associação de imagens).
A alucinação corresponde a um refluxo de grandes quantidades de Q de psi rumo à phi (e também w).
Duas regras da defesa contra o desprazer e a dor.
Primeira regra biológica: todo conteúdo que é indicado como real merece atenção.
Segunda regra biológica: interpretar a liberação de desprazer como um sinal para abandonar uma determinada via associativa. Dirigir a atenção para outro lugar.
3.4
“o início do pensamento é a formação de juízos”. Percepção dividida entre a coisa (constante, mas incompreendido) e os atributos (atributos mutáveis da coisa). O complexo-coisa continua reaparecendo em combinações diversas com o complexo-atributo. Vias de pensamento ligam esses dois tipos de complexos ao estado de desejo. Assim o juízo do pensamento resulta em economia de Q.
Entre a percepção e a identidade existe uma imagem motora (M) intensamente facilitada. Ao longo da ação, uma nova comparação deve ser feita entre a informação que chega sobre os movimentos e os movimentos pré-catexizados para realizar correções necessárias.
Erro de juízo: desconsiderar alguma diferença significativa entre o complexo-coisa e o complexo-atributo. A realidade fica comprometida.
Erro de atenção: elementos significativos não são percebidos, ficam fora do campo devido à falta de pré-catexia (ego desviou a atenção da percepção).
Pensamento cognitivo: como preparação ao pensamento prático. Ele avalia todas as vias possíveis de ação em busca da mais favorável ao movimento.
Pensamento crítico examinador: ocorre quando o processo de expectativa seguido pela ação específica não causa satisfação, mas desprazer. Ele procura repetir toda a passagem da Q a fim de detectar alguma falha no pensamento ou defeito psicológico. Regras da lógica são biológicas. A biologia é lógica.